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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

27
Jun24

Poema Infinito (719): Desfocagem

João Madureira

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As velhas fotografias estão cada vez mais desbotadas. É impossível fazer parar este processo. Desaparecem a olhos vistos, lentamente, com um círculo de luz à volta que as faz ficar brancas. Parecem uma tarde nevada onde deixou de haver neve. Lá fora as mudanças são agora mais rápidas. Existe uma nova tristeza local. Provavelmente mais colorida. Mas mais melancólica. Tudo é efémero. É triste ver as ruínas e tentar reconstruir o aspeto de outrora. Os olhos encontram algum prazer na decomposição e no abandono. As ruínas também possuem a sua beleza. Uma espécie de beleza não premeditada. A história mastiga as memórias. Alimenta-se delas. Os testemunhos acumulados excitam a nossa ânsia. Tenho medo de esquecer. Tenho medo de ter medo. Uma exortação do Deuteronómio: “Guarda-te para que não te esqueças do Senhor…” Aí está a memória a exigir a estrita e longínqua observância das regras. Não devemos eliminar o insignificante pois acabamos por ficar sem o significante e sem o seu significado. O Nilo volta sempre a inundar as suas margens, mas o seu significado perdeu-se. Foi o conhecimento que descobriu os buracos negros, mas não foi ele que os criou. As almas desassossegadas não conseguem despedir-se deste mundo. Muitas delas, demoraram-se na contemplação de alguma coisa viva de que não se tinham apercebido. A casualidade cria os seus próprios embaraços. O voo das aves transforma-se em sombra e depois desaparece. A fome de infinito pode estar ferida, mas não vai morrer. Há pessoas que mudam tanto que deixam de se parecerem consigo próprias. Acabam por deixar de se identificarem. Apenas são reconhecidas pelo nome. São como camuflagem de sonhos dos outros. Mataram definitivamente a autoironia. Delas irradia calor e frio. O aturdimento colidiu com as semelhanças e estas com as perceções. A inércia nasceu com as confissões e as combustões espontâneas. As histórias das vítimas são sempre emblemáticas. As setas que se encontram nos seus caminhos apontam sempre para o seu destino. Incerto. Destino comum. Morte comum. Cada ser humano transporta dentro de si uma promessa ainda por cumprir. São documentos mortais que necessitam de ser interpretados. Devemos afastar os filtros para ficarmos com a cor pura. Noé acasalou com as filhas de Loth. O pecado original ainda não deixou de se multiplicar. A lógica de tudo aquilo que é paradigmático tem inspiração divina. O Holocausto. O Gulag. Na realidade tudo é diferente. No entanto, ainda se continuam a acender luzes nas árvores de Natal. Os milagres continuam. As fotografias estão cada vez mais desbotadas. E a música de Bach a tentar colocar verniz para conservar os guaches de Charlotte Salomon. E as renas a fazerem tilintar os seus guizos atómicos. A boa gente tem natureza dupla. Toda a narração tem um destinatário. Deus não explicita nada, mas insinua tudo. Deus só existe porque é nomeado. A sua divindade não é diferente. É indiferente. Os livros sagrados, mais do que romances com mil e um personagens, são fábulas onde os animais estão disfarçados de seres humanos sempre a ensinar-nos moral e como nos devemos comportar. Não admira, pois, que os anjos sejam assexuados e, na sua grande maioria, suicidas. As trevas adensam-se. Tudo o que é natural é sagrado. E lá nos vamos preservando na incompreensão e na desfocagem. A cápsula de luz continua a desbotar as velhas fotografias. É impossível fazer parar o processo.

24
Jun24

687 - Pérolas e Diamantes: Estou a pensar fundar...

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 2 (6).jpg 

Estou a pensar fundar a confraria do chícharro. Mas a verdade é que me sinto esquisito, patético e até vulnerável só em pensar no tipo de indumentária que esse tipo de gente veste nos momentos solenes. De facto, tenho de confessar que aprecio mais a vestimenta de burel que se usa nas feiras medievais organizadas por esse país fora. Todas diferentes e todas iguais. Eu ando a tentar alguns tópicos de aproximação. Mas ainda é surpresa. Há epítetos apenas ao alcance dos párocos de aldeia, que é uma espécie de fauna divina em vias de extinção. E lá vai um pai-nosso. O bom vinho eleva o espírito e acompanha também muito bem uma boa salada de chícharros. E lá vai uma ave-maria. O que é preciso é descobrir ângulos novos nas velhas questões. E novas mensagens nas velhas orações. E lá vai um ato de contrição. De repente fui percorrido por uma sensação de pessimismo sobre a Humanidade. Mas é coisa que passa rápido. Já estou habituado. Há tanto êxtase na minha inércia. Sou um felizardo. O segredo do nosso desenvolvimento assenta numa mistura fina entre novos-ricos e novos-pobres. Ao povo povinho povo dói-lhe a cabeça de tanto pensar. Está na hora de tomar a medicação. O povo povinho povo sente-se a levitar quando puxa do seu cartão de débito no hipermercado. Sente-se alguém. E também quando se lembra de um qualquer alto dignatário do Governo a inaugurar o quartel de bombeiros lá da terrinha, em pleno verão, mas sem tirar o casaco para não quebrar o protocolo nem ferir a imagem da dignidade do Estado. Depois vai tudo para o McDonald’s, dar fortes dentadas nas sandes de carne prensada e mergulhar as batatas fritas de plástico no ketchup. Provavelmente, o seu tom agreste não corresponde à sua verdadeira essência. O nosso povo é devoto de Nossas Senhoras de Fátima fosforescentes e também das que choram lágrimas em cascata para redimir os pecados de todos os portugueses, incluindo agnósticos, ateus, islamitas moderados, budistas, etc. E para provar que sabe sofrer põe-se a apagar velas com os dedos. Por vezes, a chuva empasta tudo. Noutros dias é o sol que abrasa céu e terra. E não é simpático, seja lá para quem for, em dia de procissão domingueira estival, envergar fato e gravata, ou vestido domingueiro, ser sovado pela fanfarra dos bombeiros, andar atrás de um andor decorado a cravos brancos e gladíolos, a pedir a Deus perdão pelos pecados cometidos e a cometer. A paz interior depende da dispepsia. Isto apesar do pão ázimo não a desencadear. Antigamente via-se fome na cara das pessoas. Agora é mais diabetes, colesterol e triglicerídeos. O progresso deu nisto. Já não há galinhas que choquem ovos. Agora é tudo gerado em incubadoras. É desilusão atrás de desilusão. Qualquer dia acontece para aí um terramoto ou a queda de um cometa. E vai tudo para o galheiro. O castigo divino está para chegar. Antigamente, na Páscoa, beijava-se a cruz do compasso. Rezava-se. Agora opta-se pela ida à vidente tentar prever o futuro. No país do passado, os casais equilibravam-se num trapézio de pobreza. Hoje, apreciam disfarçar-se de parelha de palhaço rico e palhaço pobre. O circo continua. E há festas e romarias para todos os gostos e feitios: São Caetano, Senhor da Piedade, Nossa Senhora d’Agonia, São João, Santo António, Festa do Avante, Festa do Pontal, Festa do Idoso, etc. Distintos deuses e querubins para satisfazer toda a gente. Todos diferentes, todos iguais. A fé a levedar como se fosse pão. Apesar dos pesadelos intermitentes, na vida do povo povinho povo também há sonhos com a dose suficiente de açúcar. O corpo ainda estremece com a memória do frio. Por razões ainda não determinadas, Portugal, dizem os estudos da OMS, é um dos países com maior taxa de mortalidade por causas indeterminadas. Os portugueses têm fama de preguiçosos e de revelarem propensão para gastarem tudo em vinho e mulheres. Mas, como todos sabemos, a fama é um conceito relativo. E também gostam de mentir. E de arrepender-se do ato. Mas, como também todos sabemos, mentir é uma forma discreta de ir sobrevivendo. Desde o topo até à base, este é o país das meias-verdades. Por fim, parece que estamos a chegar a algum lado. Não sei se já vos disse, mas estou a pensar fundar a confraria do chícharro. A verdade é que…

PS – Para que tudo seja transparente como o vidro produzido na Marinha Grande, desde já deixo aqui expressa a minha declaração de interesses. Sou natural da Torre de Ervededo, povoado pertencente ao concelho de Chaves, cujos habitantes são apelidados de chicharreiros, isto segundo a Etnografia Transmontana, do Padre Lourenço Fontes. E, não sei se já vos contei, estou a pensar seriamente em fundar a confraria do chícharro...

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