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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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10
Jun24

685 - Pérolas e Diamantes: Eufemismos

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 4 (1).jpg 

George Orwell tinha razão, usam-se os eufemismos na política, na guerra e nos negócios como instrumentos para tornar as mentiras verdadeiras e o homicídio respeitável. A política ao mais alto nível é, mesmo assim, uma intenção de esconder a crueza dos factos com retórica, omissões, complexidade, exclusividade, conceitos e eufemismos. Os estados modernos conseguiram transformar as nossas necessidades em dinheiro. Ou melhor, criaram uma espécie de ideologia das necessidades essenciais para daí obterem lucros astronómicos. A verdade é que até o lixo ou a ecologia dão lucros chorudos. E a obesidade. E a hipertensão. E a diabetes. Primeiro empanturras-te e depois vais à farmácia comprar pastilhas para o desenjoo. Ou a bicicleta para emagreceres. E o capacete protetor e a indumentária e as sapatilhas desportivas e os óculos e as luvas, etc. Já não é a necessidade que cria o órgão. É o capitalismo que cria a necessidade. Os algoritmos direcionados são certeiros. As empresas tecnológicas compreenderam que utilizando a manipulação astuta da cultura da intimidade e da partilha do Facebook, por exemplo, são capazes de aplicar o excedente comportamental não só para satisfazer a procura, mas para criá-la. Os maquiavélicos, ou realistas, se preferirem, dizem uma coisa acertada e provada por séculos de história do poder: na prática, o objetivo essencial de todos os governos é servir os seus próprios interesses e defender e manter o poder e os seus próprios privilégios. Não há exceções. Nem as tais usadas para confirmar a regra. Uma forte oposição e uma opinião pública esclarecida são as únicas formas de refrear esses abusos. Alguém disse, e com razão, que apenas o poder restringe o poder. A “aristocracia democrática” é, na sua maioria, constituída por académicos ou cientistas, burocratas, técnicos superiores, ministros, presidentes de câmara, dirigentes sindicais, técnicos especializados de publicidade, sociólogos, jornalistas, deputados, comentaristas e políticos profissionais. O objetivo do poder é manter o poder. O poder não é um meio. É um fim. As relações de poder são sempre assimétricas, por mais que a “aristocracia democrática” nos tente convencer do contrário. O seu tipo de “linguagem democrática” é apenas um instrumento do seu poder. Está cheia de lugares-comuns. E, como todos sabemos, os lugares-comuns são inimigos da liberdade e da democracia. E aí está o CHEGA para o provar. A Google, por exemplo, que é uma empresa multinacional de softwares e serviços online, aprendeu rapidamente a ser uma espécie de adivinho que se sustenta em elementos que substituíram, em larga escala, os dados fornecidos pela ciência, para conseguirem adivinhar a nossa sorte e vendê-la com lucro aos clientes, mas não a nós. Nós somos o seu produto. A Google adivinha o comportamento dos indivíduos e dos grupos e vende esse conhecimento com lucro. O valor comercial do comportamento humano é enorme. Tudo o que vemos, ouvimos e vivemos é pesquisável. A nossa vida inteira é pesquisável. Vivemos numa sociedade de mercado livre. Esse mercado, em plena sociedade dita democrática, é protegido pelos fossos do secretismo, da ilegibilidade e da perícia. Há operações paralelas e secretas que convertem os excedentes em vendas, ultrapassando os nossos interesses. Ou seja, através da publicidade disfarçada, somos sugestionados a comprar aquilo de que não necessitamos com o velho truque dos preços baixos. Apesar de nos dizerem o contrário, o saber, a autoridade e o poder pertencem ao capital de vigilância, para quem nós não passamos de meros recursos humanos naturais a preço de saldo. As velhas reivindicações do direito à autodeterminação desapareceram dos radares da nossa existência. O circo é o mesmo, os palhaços é que mudaram. Como escreveram Eric Schmidt e Jared Cohen: “O mundo digital não se encontra realmente limitado pelas leis terrestres (…) é o maior espaço mundial sem governo.” Os espaços operacionais estão fora do alcance das instituições políticas. Foram expropriados. Por isso, a democracia dita liberal não passa de uma treta. De uma palhaçada. O circo montado são as redes sociais. Cada um tem direito às suas próprias palhaçadas. Neste circo de marionetas, os fios foram substituídos pelas teclas do computador, ou do iPhone ou do iPad. Por alguma razão, a Google é indiscutivelmente a maior empresa do mundo. E está sempre fora do alcance e do controle dos Estados e das suas instituições democráticas: “Eis a fórmula de Andy Grove (…) As empresas de alta tecnologia andam três vezes mais depressa do que as empresas normais. E o governo anda três vezes mais devagar do que as empresas normais. Portanto, temos um intervalo de nove vezes (…) Logo, deve garantir-se que o governo não se intromete nem atrasa as coisas.” Eles sabem o que andam a fazer. Andam a “circunscrever a democracia”.

06
Jun24

Poema Infinito (716): Ondas de frio

João Madureira

 

IMG_4383 - cópia 2 (3).jpeg

Estou longe do mar e cheiro o longo instante das ondas e o frio das suas águas e vejo o terceiro minuto depois da partida e penso que tudo exige atenção e paciência e que é preciso vigiar o voo das gaivotas e a fé e as suas mudanças de cor e depois o ar começa a pousar sobre a areia e o sal a pegar-se à pele e nós a metermos no bolso o dia acabado de passar e a respirar devagarinho enquanto os pinheiros estremecem e as mulheres vocalizam oscilações e uma espécie antiga de vontade de chorar não de tristeza nem de alegria mas de um terceiro sentimento enquanto os velhos jardineiros tiram de dentro das luvas as suas mãos impregnadas de raízes e caules e folhas e flores e nuvens de forma vagarosa enquanto fecham os olhos para não chorarem e abrem a boca como passarinhos para se alimentarem de memórias que as suas mães lhes deixaram dentro da cabeça e assobiam e respiram e orvalham vaginas sequiosas enquanto a noite se levanta e os dedos dos jovens desmontam pétalas e constroem paciências e falam entre si enquanto os grilos dentro das gaiolas começam a cantar e a comer-se uns aos outros por falta de espaço e os homens retiram da cabeça os chapéus como se fossem indignos de felicidade enquanto escutam sons murchos e então eu finjo acanhamento e delicadeza e imagino campos semeados de ternura e a Marquinhas da Ajuda a rezar o terço e a embaciar a redoma de vidro onde está a sagrada família feita de barro e a avó a acender os pavios de azeite enquanto chove nas pálpebras do pai que continua a fumar enquanto os cães acendem os seus latidos e os rapazes púberes sonham com nádegas das deusas gregas enquanto as mulheres maduras vão a caminho da missa e o sacristão toca o sino e os perus cantam glu glu glu e o sacristão toca dlão dlão dlão e o pai não diz nem sim nem não louvado seja o senhor é o nosso entusiasmo e o nosso fervor e a nossa admiração por Lázaro que depois de ressuscitar logo se foi pentear e pôr brilhantina e eu a colecionar exatidões e declarações proféticas e a fazer crescer e a encolher o sexo como se estivesse distraído ou à procura de algo que é difícil de encontrar como uma vagina aberta à beira-mar enquanto os guerreiros fazem intervalos dos seus dramas e os garotos gritam como se tudo fosse ao mesmo tempo precário e divino enquanto os pirilampos mágicos iluminam nossas senhoras de alumínio pintadas à mão e depois começo a gostar de sopa de nabiças e a dizer palavras que consigo colocar entre parêntesis e a reparar nas rugas do pai e da mãe e a encher os bolsos com rebuçados e a dar migalhas de pão ao pintassilgo e a pendurar-me na porta da cozinha para levantar a espinhela ao mando das orações do Birtelo e depois a apalpar o bolso de trás para apalpar a fisga pronta para intercetar o voo dos pássaros assustados e o enfermeiro à espera que eu desça as calças para ficar com as nádegas ao léu para ele espetar a seringa e eu a marcar olhares e a imitar gestos e a lavar os dentes e o pai a fazer a barba com a gilete e a avó a rir-se para as horas infinitas e tudo a crescer depressa e eu a caminhar devagar e o tempo a crescer e o romance a acabar e o amor a ficar cada vez mais carnal e eu a precisar de silêncio pois o pobre pai começa a morrer tão depressa e a sua morte começa a irromper de súbito pelo meu presente enquanto os acasos se vão formando da soma de várias partículas e a noite a falar comigo e eu a desfazer-me em angústia e a reconhecer cores e cheiros e luz enquanto tudo fala comigo…

03
Jun24

684 - Pérolas e Diamantes: Entre Husserl e Faulkner

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia (1).jpg 

A tese que serve de base à minha escrita, perdoem-me a ousadia, resulta da fusão entre a filosofia alemã (nomeadamente da fenomenologia de Edmund Husserl e também de Heidegger, que foi seu discípulo) e a ficção americana. A guerra que alguns julgam poder existir entre elas é a metáfora que me dá alento. E inspiração. A minha mundividência é essencialmente livresca. Afinal, não passo de um escritor sem posses para percorrer mundo. Os estilos e as ideias deslocam-se, como eu, entre a casa e o trabalho. Para mal dos meus pecados, tudo o que leio é literatura traduzida, pois não domino minimamente o alemão e entendo pouco de inglês. Ou seja, desloco-me entre estes contextos, que são quase como muros. Sartre afastou-me das letras francesas modernas por causa de O Ser e o Nada (L’Être et lê néant). Mas também li que este ideólogo revolucionário conseguia imitar quase na perfeição o Pato Donald. Apesar do seu amor essencial por Simone de Beauvoir, e de ela por ele, apesar do seu estrabismo divergente provocado por uma constipação aos três anos, achava que deviam ambos conhecer também amores contingentes. Mas voltemos ao que interessa. O “nada” sartriano, ou “néant”, se preferirem, levou-me ao “Was Ist Metaphysik?” (O que é a metafísica?) e dali apenas consegui sair a muito custo. Apesar da leitura dessa obra de Heidegger, o que me ficou foi a formulação de Sartre de que os seres humanos não são o que são e são o que não são. Já a literatura americana bateu-me forte com o romance Manhattan Transfer, de John dos Passos, que apreciei pela sua maneira original de representar uma cidade moderna como um palimpsesto de experiências simultâneas, mas descontínuas. Ler filosofia alemã é meio caminho andado para escrever frases destas. Depois daí saltei para Faulkner. E também para Hemingway. E Flannery O’Connor, Steinbeck e Caldwell. A sexualidade da meia idade compreendia através das leituras intermitentes das páginas ímpares dos romances de Philip Roth. Para que se saiba, quase nenhum dos escritores franceses influenciados pela ficção americana tinha ido alguma vez aos Estados Unidos. O conhecimento que tinham acerca da natureza americana resultava da leitura dos romances traduzidos e dos filmes de Hollywood. Mas, como escreveu Louis Menand, “o desvio interpretativo faz parte da transmissão”. Ao contrário de Coindreau, tradutor de Faulkner para francês, considero que os enredos ao estilo “Grand-Guinol”, de horror gráfico e amoral, dos romances do escritor americano, bem assim como a idiotia, os assassínios, as violações, o incesto, o racismo e a depravação em geral, não podem ser ignorados. Ele achava, e a meu ver erradamente, que nas obras de Faulkner, o tema era apenas um pretexto para o desenvolvimento da técnica. Mas, provavelmente, foi o que mais ficou. A escrita de António Lobo Antunes é o prova provada disso mesmo. De facto, Faulkner alcançou uma poderosa representação do tempo vivido ao subjetivar completamente a narração e fazer implodir a distinção entre perceção e memorização. Daí a razão pela qual muitos leitores, eu incluído, têm dificuldade em perceber a sua obra. Para Faulkner, o pensamento era apenas a soma das nossas intenções e o caráter a soma das nossas ações. Já Hemingway nunca entra nas suas personagens. Limita-se a descrevê-las do lado de fora. Os seus heróis nunca se explicam a si mesmos. Limitam-se a agir. Ora isto era a rejeição completa do romance francês, nomeadamente o estilo do paradigmático Proust, cuja especialidade consistia na introspeção e na análise. A maioria dos escritores franceses apostavam na descrição da vida interior. Os americanos apresentavam nos seus livros uma sequência de ações sem comentário, como a cena de um filme. Apenas Faulkner dava saltos desordenados no tempo, porque tinha lido Bergson. Ou seja, coincidia com Proust, porque também ele se tinha inspirado em Henri Bergson. Apesar da sua militância marxista, Sartre, quando esteve no exército, sonhou ser um homem de ação irrefletida. Cito: “O meu trabalhador americano (semelhante a Gary Cooper) poderia fazê-lo e senti-lo. Imagino-o sentado num talude dos caminhos de ferro, cansado, coberto de pó; estaria à espera do vagão dos animais [le wagon à bestiaux], para onde saltaria sem ser visto. E eu teria gostado de ser ele [um homem] que pensava pouco, falava pouco e fazia sempre o que estava certo.”

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