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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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29
Jul24

692 - Pérolas e Diamantes: O macaco cego

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 8 (10).jpg 

Um povo falhado é um precipício. E por aqui andamos a prestar homenagem às pedras, a escrever versos desavindos, a imaginar guias turísticos das cidades, a reparar nos saramagos e nas verbenas, nas ruas empinadas, nas curvas acentuadas que nos levam aos bairros tristes ou às aldeias abandonadas, a memorizar as noites de luar e o silêncio escuro das noites de inverno, a passear a solidão e as suas melancolias, a admirar estátuas em contraluz, a contemplar a cintilação do seu bronze, a verdura das magnólias e o branco enferrujado das casas, as ameias das muralhas, a direção longínqua do mar e das nuvens azuis que deslizam no céu quando está bom tempo e as tardes coadas, a interrogar almas, a pensar no tempo incalculável da matéria, a debater ideias opostas, a traçar destinos, a ser fiel a ideias infiéis, sempre entre anjos e demónios e a fixarmo-nos nas coisas simples e nas coisas que estão por detrás delas e no amor e na dor e no infinito e na sede que ele provoca e nas ausências e na semelhança entre deuses e nas portas que se abrem e naquelas que se fecham e, depois, quando atingimos o cume da felicidade, tropeçamos na pedra de Sísifo e lá vamos nós de novo colina abaixo ao rebolões. A luta sisífica continua. As ideias por aqui parecem feitas de vapor. E as epifanias continuam a repetir-se. Os raios de sol da tarde aquecem o espaço. Há um certo ar de quietude. Umas pessoas andam a imitar outras pessoas. É como quem joga um jogo. A pantomima define as suas próprias fronteiras. Os macacos japoneses bem nos ensinam, mas ninguém quer aprender. Mizaru não quer ver o mal e cobre os olhos. Kikazaru não quer ouvir o mal, tapa os ouvidos. Iwazaru, que não quer falar mal, veda a boca. Tudo parece turvo e indistinto. O mundo está cheio de excitações vazias. De sentimentos sem significado. Isto tanto dá, porque olhando para trás e para a frente não se vislumbra mais do que um horizonte desnudo. Já não se pode arrepiar caminho. Há sempre os atuantes e os oponentes que vão mudando de posição conforme os ciclos. Muitos mudam até de ideias para não mudarem de sítio. E há outros que mudam de sítio para não mudarem de ideias. Mas são sempre uma minoria. Quando não a minoria da própria minoria. E também há em ambos os grupos os intriguistas, os direitistas, os esquerdistas. E os pecadores. A maioria são redondos, redundantes, sem qualquer utilidade científica. Aviso: isto não é uma embrulhada é um verdadeiro labirinto. E todos sabemos que os labirintos não se fazem a si próprios. E o génio não está ao alcance de todas as consciências. Era o que mais faltava. Uma sociedade desse tipo era a loucura total. A linguagem petulante é sempre cultivada de propósito. É com ela que os medíocres se alimentam. À míngua não morrerão. Mas em verdade vos digo, o mais avisado é não complicar demasiado as coisas, por vezes o melhor mesmo é o desprezo. Quando se vai à guerra, mesmo que seja a civil, o mais sensato é ter esperança no triunfo, mas também levar embrulhado num pano de cozinha o temor da derrota. Não é prudente ignorar a verdade. O mais acertado é falar como os gregos e sonhar como os celtas. O povo aí está para obedecer. Instintivamente. Este glorioso povo que não faz outra coisa na vida a não ser falar e sonhar. Claro que também trabalha, mas isso é nos intervalos entre as nove e as cinco. Claro que existem os factos. Mas os factos, quando se opõem à opinião geral, não falam por si sós. Dizem que os homens são perigosos, mas as mulheres são-no ainda mais. Depois de contemplarmos o amor, o difícil é saber para onde dirigirmos a esperança e entender os sinais: os triângulos, os círculos, as espirais, as retas, os pontos, os arabescos e as fugas. E os montes de Vénus. Mas, para isso, necessário se torna pertencer a uma loja ou seita secreta, pois só aí existe a fonte da descodificação. Para que a vida não seja um disparate, deve-se fugir da realidade, do equilíbrio e da razão, pelas escadas secretas da fantasia. Há sempre uma mentira que consegue contentar toda a gente. E neste país nem é necessário ser-se muito imaginativo. Obviamente que uma pessoa vai vivendo e aprendendo. E depois de tanta aprendizagem e de aturar tanta imbecilidade social, eis que chegámos ao momento exato de, tal como Hugo Pratt, sentirmos o desejo de sermos inúteis. Que desilusão, Corto Maltese! Que desilusão!

25
Jul24

Poema Infinito (723): O tempo sacrificado

João Madureira

ORIGINAL (6).jpeg 

Neste poema há um pombal sem pombas, uma casota sem cão. E um poeta sem alma. Um galinheiro com galo, mas sem galinhas. E o mesmo poeta sem sonhos. E um relógio sem horas. Meninos sem brinquedos. E sem brincadeiras. E pombas sem pombal. E cão sem casota. Este é um poema doce de coisas amargas. Com um rapazinho sem contos de fadas. E marinheiros sem mar. E sem barco. E com Isaac disposto a sacrificar Abraão. A intenção pode ser divina. Ou então apenas fazer sentir ao pai o que o filho sentiu. É pecado invocar o nome de Deus em vão. De pecadores destes está o inferno cheio. Motivados, mas sem convicção. Convictos mas sem motivação. Metamorfoses e epifanias, a religião está cheia delas. Não há textos sem contextos. Do zero ao absoluto, apenas existem dúvidas. Só existe luz porque há escuridão. Também se pode fazer o bem a partir do mal. O Demónio ao serviço de Deus. Que coisa diabólica! Santo Agostinho está neste momento em carne viva. E o tempo a subir os degraus, lançando um olhar desanimado ao cão que ladra no pátio. O tempo sou eu a envelhecer. E também as fendas do teto, a tinta manchada e a despegar-se das paredes, os defeitos nas vidraças, a paisagem distorcida que se vê através deles, o lavatório com os pés coxos. E a avó vestida de preto a sorrir-se na fotografia amarelecida. Eu a olhar para o tempo quando me vejo ao espelho. E o tempo a ver-se ao espelho e a olhar para mim. E o tempo a amanhecer ainda mais cedo que as cotovias ou o canto extemporâneo dos galos da aldeia. O tempo pode até ter muitas virtudes, mas possui o defeito da ingratidão. Aflige-nos sempre com a sua dureza e, sobretudo, com a sua indiferença. O tempo a assistir impávido e sereno aos padres da Inquisição a salmodiar crueldades e a saboreá-las como se fossem hóstias sagradas. A salpicarem os pecadores com palavras enfáticas, de olhos escuros a circunvagar o templo e a pronunciarem as palavras “míseros pecadores”. E a fazerem ressoar as preces como se fossem trovões. Por alguma razão divina, o esplendor da beleza é considerado um pecado. E os pecados a devorarem-nos a alma como se fossem crocodilos. A propósito, para onde vão as palavras dos pecadores? E as serpentes do bem a olharem para a alma dos pecadores e a fasciná-los como se fossem passarinhos prontos a ser engolidos. E o tempo, como um Deus monoteísta, impávido e sereno. E depois das almas pecadoras serem esfoladas vivas, sobrevém a paixão de Cristo e o sangue torna-se numa redenção arrogante. Tanto sacrifício para nada. E o tempo a escutar, a erguer o rosto a custo e a contemplar-se ao espelho. Inchado. Rubro. Cheio de pavor e paciência. A observar os vergões na pele. A soltar gritos mudos quando se mexe. Não possui sentimentos de culpa. Para o tempo não existem dias, nem meses, nem anos. Apenas há espera. A ver sucederem-se os crepúsculos, os amanheceres, os ecos da alegria, o rumor da chuva, o cheiro a frescura, o medo a engolir os remorsos. O tempo a beijar fechaduras de salas fechadas à chave, como se fossem igrejas abandonadas. E o lume a apagar-se como os dias bons. Para ali estão as caixas que antigamente serviam para os bichos-da-seda. Para ali estão maçãs maduras de mais e os livros da escola primária apodrecidos. Um velho tonel rombo apara a água da chuva. E o tempo, como um cavalo indolente, a puxar a carroça pelo caminho infinito do universo. Que nos leva a todo o lado. E nos leva a lado nenhum.

22
Jul24

691 - Pérolas e Diamantes: Houve tempos...

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 7 (2).jpg 

Houve tempos em que os cinemas eram como catedrais, imensos auditórios. Com cortinas fechadas sobre os ecrãs próprios para os 70 milímetros. Eram vastos mundos de ilusão, onde as pessoas se podiam refugiar. Os cinemas eram uma nova religião. Capazes de nos modificar, de alterar a nossa perceção. Olhávamos para os ecrãs e partilhávamos momentos de transcendência, ilusões, desilusões. E medos. Eliminávamos alguns medos durante algumas horas. E pensávamos que éramos felizes dentro da nossa infelicidade intermitente. Éramos como voyeures controlados, sentados na escuridão a olhar para sentimentos e existências secretas. A vermos coisas que não devíamos estar a ver. Antes de o filme começar, as luzes iam diminuindo lentamente, ainda que faltassem alguns minutos para a cortina subir. Quando o pano ascendia, o ecrã iluminava-se de repente. Primeiro viam-se trailers, depois notícias do mundo, a seguir desenhos animados e, por último, o filme. A rapaziada, e a gente de menos posses, sentava-se na plateia. Os mais endinheirados iam para a tribuna, que era o balcão da sala, para onde se entrava pelo piso superior. Muitas das vezes saímos do cinema desiludidos, outras consolados, divertidos, ou ainda com vestígio de lágrimas nos olhos. Umas vezes éramos cowboys, outras heróis de Kung Fu. Umas vezes amantes, outras amados. Umas vezes crianças, outras adultos. Umas vezes heróis. Outras vezes vilões. Tornávamo-nos personagens nem sempre agradáveis ou fáceis de controlar. Ao nível dos sentimentos. Nos filmes de ação e nos cómicos ouviam-se frequentemente gritos e risos exagerados. As verdades eram inocentes. Pelo menos era isso que pensávamos. O cinema também era um bom pretexto para beijos rápidos e apalpadelas nas coxas das namoradas. Muitos adolescentes criavam as suas próprias fantasias baseados naquilo que viam no cinema e liam nos livros. O sexo era muito limitado, pois as jovens de então eram muito cautelosas e os jovens pensavam-se agentes secretos. E os contracetivos não estavam logo ali à mão de semear. Tinha que se ir à farmácia. E a terra era pequena e toda a gente se conhecia. E todos gostavam de cochichar. O ambiente era opressivamente conservador e as famílias ostensivamente religiosas. As pessoas jogavam jogos de aparências e faziam questão em manter a discrição. Apesar disso, as raparigas usavam bandoletes na cabeça e minissaias e os rapazes cabelo comprido e calças à boca de sino. Era uma forma de imitar o mundo exterior e de disfarçar a frustração. As fantasias sonhadas, quando pronunciadas, soavam irónicas e falsas. Os nossos sonhos estavam reclinados nas cadeiras das piscinas dos filmes franceses. Quando estávamos em grupo, fazíamos poses como se estivéssemos em frente do fotógrafo na cerimónia da comunhão solene. A sorrir para a câmara. Ninguém queria ficar mal no retrato. Muitos falavam ininterruptamente e todos fumavam. Muitos julgavam-se fabulosos e radicais. Mas eram apenas pose. Pensavam-se bonitos, mas eram apenas aleatórios. O ambiente era claustrofóbico, como se estivéssemos dentro de um armário. A realidade era entediante, mas não havia outra opção. Havia muitos bêbados. Bebia-se mais vinho do que água. Muitos descontrolavam-se, ficavam meio zangados, e outros caíam para o lado ou adormeciam. Os que se julgavam mais radicais, pronunciavam as palavras com muito desdém, perguntando ou respondendo com esgares desdenhosos e exagerados. Gestos súbitos costumavam inflamar-lhes a fúria. Era normal acabar tudo à porrada. Depois aparecia a polícia, as mulheres e os filhos dos que eram casados a gritar e os cães vadios a ladrar. Os mais discretos abriam então as mãos e acenavam como se fossem alienígenas notívagos e punham-se na alheta. As outras narrativas da cidade eram de idêntica idiotice. Também as havia de escárnio e maldizer, a cargo dos diversos poetas do burgo. A realidade doía como ferida aspergida com sal. Claro que havia causas e efeitos, mas as ligações não estavam ao alcance da maioria. Tudo parecia aleatório, irrelevante, enfadonho, triste. E era-o de facto. Uma coisa vos digo, é muito difícil sair deste tipo de realidade ileso. Essa realidade era muito parecida com um filme de Béla Tarr, especialmente de Sátántango. Boa para filmes a preto e branco, mas dolorosa na vida real.

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