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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

30
Set24

700 - Pérolas e Diamantes: O papagaio e as gralhas

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 8 (12).jpg 

Era entusiasmante, depois dos estudos, sair junto com os amigos do bairro para fazer voar o papagaio de papel. Era comovedor ver o papagaio subir a grande altura. O papagaio era feito de velhas folhas de jornal que continham, muitas delas, notícias preocupantes, mas, uma vez o aparelho no ar, deixávamos de pensar nisso e entretínhamo-nos a puxá-lo, aos sacões, com um fio. Queríamos acreditar que, como nos sugeria  a linda catequista, o objeto voador nos arrancava do espírito as preocupações terrestres e nos levava consigo – ó credulidade juvenil! – para as regiões celestiais. Quando chegava a hora de enrolar o cordel, e quando o papagaio começava a descer pouco a pouco, abandonando aquele espaço de luz esplendorosa, para aterrar, oscilando, no chão, inerte como uma criatura morta, todos nos sentíamos a emergir de um sonho. Depois algum de nós apanhava o papagaio, olhando em redor com um ar alucinado, como se a ave de cana, papel e cola tivesse sido abatida por algum caçador furtivo. Tão entusiasmados andávamos que prometemos uns aos outros construirmos um papagaio de papel maior do que o primeiro.

Mas promessas leva-as o vento.

Aquele papagaio fazia-me sempre lembrar do vitral da igreja e do seu brilho suave, onde pontificava a pomba do Espírito Santo que irradiava luz sobre a cristandade. A crer nas notícias que enchiam as páginas dos jornais de que era feito o papagaio, parece que a luz da ave divina, em vez de iluminar os seres humanos, os cegava. A guerra é a guerra, no céu e na terra… cruzado, cruzado, segundo diz o Fausto Bordalo Dias.

E o soldadinho na guerra colonial a matar e a morrer, como um passarinho a quem expulsaram do ninho antes de saber voar, em defesa de uma terra que não era a sua. E a bonita catequista à espera e a rezar para que o seu mancebo, feito militar à pressa, viesse da guerra são e salvo. 

O soldadinho não voltava do outro lado do mar, avisava José Afonso. Mas o papagaio voava sob o céu do nosso bairro.

Os próximos éramos nós.

A ir para a guerra.

E as gralhas desciam da torre da Sé para deambularem por ali e nos meterem medo. Os mandantes de então estavam quase tão enferrujados como os ferros que encimavam o muro do velho cemitério. Aos domingos, os homens jogavam o chinquilho para entreterem a pobreza e o pavor. Concediam aos que passavam um olhar sem brilho. Pareciam cavalos cegos a pastarem no meio dos caminhos.

Tudo era lacónico, sobretudo as palavras. Os olhares eram receosos e os gestos tímidos. Cada um encolhia-se como podia. Uns pareciam cansados. Outros desiludidos. A tristeza libertava nas pessoas uma espécie de marcas viscosas como as que deixam os caracóis. A esperança numa vida melhor era semelhante à chama de uma vela a tremeluzir ao vento. O velho ditador, de voz metálica e roufenha, era ao mesmo tempo bispo, padre e sacristão. Vigiava até o olhar de quem ia tomar a hóstia. Os rostos dos indivíduos pareciam janelas fechadas.

As personagens mediúnicas contorciam-se para exaltar os seus sentimentos, para abrandar a sua fúria. A sua monomania litúrgica enchia o país do cheiro a cera, incenso e a naftalina. O povo vivia mergulhado em ignorância e inocência. Esse era o estrume da ditadura.

O velho ditador residia no meio das gralhas que vigiavam tudo. As gralhas tinham o tenebroso hábito de aparecerem na casa das pessoas desbocadas, durante a noite, para as prenderem. O ditador tratava o seu povo com condescendência e rudeza. Com distância. E ele, o povo, retribuía-lhe com penitência, pejo, orgulho, amor, lealdade. E humilhação.

Este nosso lar parecia uma velha casa abandonada, onde no quintal nascia erva ruim e as folhas caídas cobriam os passeios com o seu aspeto de tapete húmido. O vento de inverno uivava em redor. A chuva fria batia na vidraça das janelas. O luar criava fantasmas nas paredes dos quartos, velando toda a noite a solidão.

Enquanto as gralhas vigiavam o nosso sono, o velho ditador fazia amor com as  suas amantes, que tanto podia ser uma loira e pecaminosa francesa como uma beata, a morena portuguesa que lhe tratava das pitas e dos láparos.

Depois oravam em conjunto. E lavavam os preservativos para poderem ser utilizados uma segunda vez. E não mais.

Agora invoco José Mário Branco, e enquanto o papagaio de papel sobe no ar, e enquanto eu e os meus amigos de outrora nos emocionamos com a antiga emoção do seu voar, com tantas guerras travadas, já não sou capaz de fazer as pazes. São milhões as flores que destruíram as ruínas, inclusive os cravos. E as rosas. E os lírios. Cá dentro só inquietação, inquietação. E giestas. E urzes. E tojos. E eu a olhar para as poldras. E eu a ficar pelo caminho. Porquê, não sei.

26
Set24

Poema Infinito (729): O vento oculto

João Madureira

IMG_4383 - cópia 4 (6).jpeg 

O vento oculto é atraído pelas janelas. E eu sem conseguir desviar o olhar. O tempo caminha seco. Sinto os odores da horta. A raiva deixa sempre atrás de si um imenso espaço vazio. Eu sinto-o muitas vezes.  Depois o vento leva-a para o sítio de onde veio. A raiva extingue-se. Segue-se a tristeza. Uma imensa tristeza circunflexa. O crepúsculo cai diante dos meus olhos. Assusto-me com o seu imenso. Mar. Sol. Dignidade. Esperança. Apesar do seu absurdo, revolução é diferente de revolta. Viver fora do tempo é uma experiência translúcida. As notas de música só ganham sentido dentro da totalidade da melodia. Toda a realidade é precária. Deem, por favor, um espelho aos olhos de Narciso. Nos meus, passa por eles um rio. Lá longe, as tempestades chicoteiam os mares. Por aqui, a raiva e o desalento desenraízam carvalhos. Tudo isto, segundo Anaximandro, tem origem numa matéria primordial indeterminável. A vida é assim mesmo. As montanhas parecem versos lacunares cheios de letras ou sílabas isoladas, com um sentido oculto. Ou sem sentido nenhum. Tudo envolto num lamento silencioso. Um vazio eloquente toma conta dos espaços em branco. A violência do nada provoca metamorfoses súbitas e desesperadas. A solidão começa a surgir. De novo. Por vezes desaparece. Outras fica a pairar no ar como uma nuvem. Algumas noites vejo, através da janela aberta, o brilho difuso dos candeeiros da rua. Quando chove, entra por ela o cheiro inconfundível da terra. Penso em plantas com minúsculos rebentos com um brilho branco e azul. Uma mulher velha e solitária atira flores murchas para a compostagem. Na minha aldeia esconderam inconscientemente o seu passado ilustre. Sinto que vou de olhos fechados no comboio fantasma. Antigamente costumava brincar por entre os muros, às escondidas. Esperava ser descoberto. Desejava ser descoberto. Tinha medo de ser descoberto. Por ela. Quando entro na escuridão cruzo os braços à frente da cara. A mãe toca-me no ombro em sinal de que já acabou. Abro os olhos. As palavras dos contos de fadas também já foram para a compostagem, junto com as flores murchas da velha mulher, curvada. E os ramos da árvore genealógica. Uma silhueta reluz e depois desaparece. Sinto-me a deslizar sobre a fina camada de gelo do lago da aldeia. Sinto-me a apalpar urtigas. Lembro de novo a luz do candeeiro, a silhueta reluzente, a velha mulher, curvada, a deitar as flores murchas para a compostagem. Entro na igreja, na parede norte está pintado o abismo do inferno. No teto olha para longe, com uma expressão isenta de dor, São Sebastião. O horizonte visto da porta lateral do templo continua a ser igual. Em tempos disse, como se rezasse uma pequena oração: o amor é uma revolução. E uma revelação. Agora está tudo coberto de musgo. Inclusive as palavras e os sentimentos mais antigos. O tojal está completamente tingido de amarelo doce. Tudo parece encontrar-se a uma imensa distância. Sucedem-se as implosões sentimentais. Cada sentimento é um reino em si mesmo. Alguns pássaros deixaram pegadas delicadas na areia molhada da borda do rio. Olho para a aldeia e sinto o seu vazio escancarado. Dizem que não vale a pena chorar. As lágrimas provocam o caos interior. E ainda mais implosões. Antigamente os anjos falavam. Agora ali permanecem mudos como pedras. Mudos. Como pedras.

23
Set24

699 - Pérolas e Diamantes: Isto está uma confusão pegada

João Madureira

Apresentação3-2 (1).jpg 

Isto está uma confusão pegada: marxistas burgueses, fascistas democráticos, fidalgos proletários, camponeses e frades motoqueiros, gente espirituosa cheia de celulite, gente com máscara por cima da careta, intelectuais destruídos pelo seu saber, parvos a escreverem versos, poetas a fazerem-se de parvos, romancistas a redigirem madrigais sobre a infelicidade carnal. E como se tudo isto ainda não fosse bastante, os políticos de agora não passam sem decifradores de enigmas, intérpretes de adivinhas e criadores de ambientes ambíguos. Os capitalistas até se pelam por patrocinarem fundações onde os caniches, por eles subsidiados, se afirmam defensores das letras e do bom gosto e elogiam o estímulo às artes por parte de quem as detesta. Visitar salões ainda continua a ser mais divertido do que ir ao teatro ou à ópera. É sempre delicioso apercebermo-nos da agitação, das intrigas políticas, empresariais e amorosas, da comovente estirpe dos dominados, do sonho vaidoso dos aristocratas e das preciosas ridicularias dos burgueses. Como diz Rubem Fonseca, artistas em geral e escritores em particular, são as mais invejosas das criaturas. Coitados dos caniches. De certa maneira, a inveja é uma forma de elogio. Já Montaigne dizia que era melhor ser invejado que amado. Provavelmente Montaigne nunca afirmou isto, mas eu prefiro acreditar que sim. Gente pura, amante e amada só nos contos de Charles Perrault. Provavelmente já não já charlatões, hipócritas e gente libidinosa. Tartufos são gente de antigamente. Nesses tempos mandavam-se os pecadores profundos para o inferno. Mas como agora extinguiram os domínios ardentes do Demónio, para onde irão essas criaturas? Provavelmente para o limbo. A liberdade religiosa tem destas coisas. Acaba com umas coisas e não sabe o que fazer com outras. Os privilégios dos protestantes e dos islâmicos são agora imensos, bem assim como os dos imigrantes e os dos ciganos. Cura, cura-te dos pecados, se é que podes! Anjos. Demónios. Jesus. Jesus? Ai Jesus! Aí vem o Lobo Mau a tocar o berimbau. O Capuchinho Vermelho que se cuide. Vá lá, caniche, levanta os olhos do iPhone e vai dar banho ao dono. Dobrar os joelhos e fazer mesuras nas festas dos poderosos é agora menos doloroso. Alguns dos convidados até conseguem vir de lá com uma ou duas medalhas de mérito e bons serviços. Vamos lá pacificar os verdadeiros devotos. Vamos lá lembrar as palavras do bom Montaigne: “O meu espírito não foi feito para se dobrar, mas os meus joelhos sim.” Os sectários, religiosos ou não, apenas entendem aquilo que querem entender. O ódio é um sentimento duradouro. As pessoas muito vingativas são também as mais pacientes. Quem se esconde atrás de palavreado fá-lo para esconder a sua ignorância. Na verdade, somos todos um pouco hipócritas. Mas a falsa devoção é a sua forma mais comum. E a mais abjeta. A maior fraqueza humana reside no amor que se tem pela vida. Os caniches também têm crises de melancolia. Os caniches são interesseiros, por isso não cometem desatinos que os prejudiquem. Mas entre os caniches e os seus donos estabelecem-se relações estranhas. O caniche ama o seu dono, sem o estimar. Enquanto o seu dono estima o caniche, sem o amar. Pobre caniche. Pobre dono. Tanta estima mal aproveitada. Chegam mensagens e mensageiros de todos os lados, apesar da mensagem ser sempre a mesma, mas com palavras aparentemente diferentes. Na Torre de Babel moderna  todos falam a mesma língua para trabalhar, o inglês. E as outras línguas, as que agora são utilizadas para as conversas em família e para o amor, acabarão por se render. Com razão, ou sem ela. O que vem a dar no mesmo. A verdade é que não é preciso ser muito sábio para escrever banalidades e agradáveis zombarias. Mas desde aqui faço um pedido para que os leitores mais benevolentes reservem o seu riso para os dichotes dos escritores mais sábios, conhecidos como mestres ou escritores premiados. Ou para aqueles que começam por fazer piadas sobre gatos que cheiram mal e acabam a ganhar bom dinheiro sobre isso, sobre aquilo e sobre mais não sei o quê, com a devida autorização e beneplácito do homem do bolo. Ser bobo da corte ainda continua a ser uma boa maneira de ganhar a vida. Sobretudo se se for politicamente correto.

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