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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

31
Out24

Poema Infinito (734): O povo da lusofonia

João Madureira

 

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Estamos dentro dos dias e os mamelucos aos saltos. Brancos, pretos, mulatos e híbridos. A falarem eurolínguas e português do Brasil. A lusofonia dança então uma morna. E depois uma koladera. Os poetas que fracassam são um espetáculo mundial. Uma festa de poetas é uma festa de mendigos. Bem-vindos sejam à lusofonia indigesta, pois possui uma ironia melancólica. É pouco o tempo que nos é dado para vivermos a nossa vida na terra. Deus fez mal os cálculos. Ou acreditou muito pouco na sua criação. Concebeu também os poetas, mas esses saíram-lhe esquisitos e incompreendidos. Angustiados. A angústia que vem de muito fundo acaba por se tornar luminosa. A coragem sombria pode transformar-se em desespero cintilante. A poesia lusófona é uma poesia dissolvente. Todas o são, à sua maneira. Os verdadeiros poetas são incorruptíveis, provavelmente porque não possuem mais nada de seu. E o poeta aí está entre enigmas, entre as distopias e o apocalipse. A história da lusofonia cabe numa mão. E na outra a nossa pobreza. Também poética. A arte é inútil diante da morte. Daí a necessidade de contar histórias com poesia dentro. E a ironia a recortar-nos  os sorrisos. E a poesia, que também é uma história infinita, a transcender os factos. E os poetas sempre ameaçados pelo desassossego que costuma invadir as suas pequenas narrativas cheias de autoficção e de aparições. Apesar de tudo, é sempre possível encontrar um pouco de sossego e de propósito. A vida algum deve ter. A poesia é como uma espécie de comédia com gemidos dentro. Com irreverência e desespero. Um poeta é um D. Quixote infinito. Esta angústia custa a desaparecer. Este país custa a desaparecer. A nova Senhora de Fátima custa a aparecer. De novo. Tudo tão cheio de musgo que se aparenta a um presépio disparatado. E o nosso povo imóvel dentro de uma neblina transparente. À espera que apareça o D. Sebastião. Emboscados no silêncio. A exprimir-se por meio de fendas combustíveis. Todos são puritanos. Tanto os republicanos como os monárquicos. Tanto os revolucionários como os conservadores. Tanto os de esquerda, como os de direita. Tanto os católicos como os ateus. E o povo a empurrar os seus heróis pela estrada fora e eles a recitarem-lhe poesia lírica com sabor a óleo de fígado de bacalhau. Todos a nadarem nos pântanos da foleirice. Especialmente os poetas que vão perdendo o cabelo, os dentes e a complacência. Todos a viverem dentro da lentidão. A olharem para um labirinto ilusório. A blindarem a lusofonia dentro de rimas como se todos fizéssemos parte de um jogo infantil. O futuro é uma sombra. E nós de bolsos vazios. A tentarmos perceber o sistema nervoso dos anjos. A tentar perceber a durabilidade da virgindade. A honra lusófona é absolutamente concreta. Estou no meio da minha casa à espera que chova. Espero acabar o poema antes de tomar o café. Tudo permanece imóvel. Os zumbidos. As horas. A linha do horizonte. Tudo aquilo que é feminino. As confidências. E os pássaros lentos a sobrevoarem as ruínas do império. A lusofonia chora. Lisboa canta o fado. A lusofonia é uma coisa surreal. E eles, os novos lusófonos, dentro de labirintos ilusórios, a saborearem rimas invisíveis como se fossem arganas de bacalhau. Por isso, os meus versos estão blindados às rimas. O futuro é uma sombra. Apenas os sexos são absolutamente concretos. Que Deus os ilumine enquanto pode.

28
Out24

Fornicar ou não fornicar, eis a questão

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 4 (5).jpg 

Quando os Babilónios conduziram os judeus para o cativeiro, pediram-lhes que tocassem harpa. E os judeus disseram: “Trabalharemos para vós, mas não tocaremos.” É o que agora devemos passar a dizer. Trabalharemos para o Estado mas não vamos fornicar mais sem a ajuda, a tempo inteiro, dos contraceptivos. Não vamos continuar com isso de fazer crianças. Não queremos conceber crianças para as colocar perante a indiferença do Estado. Por isso não vamos tocar gaita-de-beiços. Fodei-vos.

 

Tenho este pensamento estranho enquanto a chuva forte tamborila nas janelas e coloco uns cilindros de madeira sintética na lareira. De seguida tomo o meu ansiolítico, preparo o café e abro uma garrafa de água mineral. E também me boto a fumar uma cigarrilha, pois ando a tentar deixar o vício do tabaco. Volto a pensar na Crise e sublinho na revista LER as palavras de Abel Barros Pinheiro: “Crise é o momento da decisão, é afinal um estado de ânimo propenso à acção e consequentemente à felicidade. As pessoas, como se sabe, ficam mais felizes quando se mexem.” É o que eu tenho de fazer. Mexer-me. Fornicar é preciso, viver não é preciso. Fornicar mas não procriar. Temos que fazer como os judeus. Já que nos cortam no salário, nós temos de cortar na procriação. Afinal o povo é quem mais ordena. E se o povo não procriar ninguém mais procria coisa que valha a pena.

 

Entretanto olho para a lareira e fixo-me durante um instante na estranha chama produzida pela lenha sintética. Enquanto puxo o fumo da cigarrilha lembro-me de um poema de Carlos de Oliveira: Entra pela janela / o anjo camponês; / com a terceira luz na mão; / minucioso, habituado / aos interiores de cereal, / aos utensílios / que dormem na fuligem; / os seus olhos rurais / não compreendem bem os símbolos / desta colheita: hélices, motores furiosos, / e estende mais o braço; planta / no ar, como uma árvore, / a chama do candeeiro. Seguidamente olho para o meu bonsai de plástico e choro. Eu, que sempre me senti, como bem definiu um meu falecido amigo, um rural empedernido.

 

E agora algo completamente diferente. Pego nos jornais e revistas e ponho-me a ler.

 

Começo pelas palavras do senhor embaixador inglês, na hora da despedida. Depois de ler a entrevista ao Expresso, orgulho-me da nossa relação com os ingleses. O senhor embaixador adora-nos. Considera que a nossa sociedade é mais aberta que a sua, que o coração é o lugar mais importante do corpo de qualquer português. E isto é lindo, lindo. E vindo de quem vem, até me provoca pele de galinha. Fico mesmo arrependido de ter tomado o meu ansioliticozinho, pois ler tão bonitas palavras chegava e sobrava para combater a minha depressão por um dia ou dois. Mas agora já está e não posso vomitar o comprimido.

 

O senhor Richard Ellis é um amante da nossa língua. O Foreign Office pagou-lhe um curso intensivo de português. E ele, para aproveitar o tempo e o dinheiro ao máximo, estudou o português básico com as encantadoras peixeiras de Matosinhos. Aprendeu, inclusive, a verbalizar, sem soletrar, alguns palavrões. Ai este bom povo português! Na sua opinião avalizada, o Norte é o melhor lugar para aprender uns palavrões. Nisso somos parecidos a nuestros hermanos.

 

É evidente que ainda estudou a nossa língua com outras pessoas mais distintas. Daí a sua preferência por três vocábulos: “pantufa”, palavra maravilhosa que presumivelmente aprendeu com algum conselheiro de Estado; “paralelepípedo”, que de certeza conheceu com um professor pós-doutorado da Universidade; e a “brutal” (o adjectivo é seu) palavra “arroto”, que de certeza ouviu nalgum jantar com a família de acolhimento em Matosinhos. Mais tarde percebeu porque se arrota tanto em Portugal. “Em Portugal”, disse o senhor Embaixador, “nada se faz sem a frase ‘temos de almoçar’. Eu gosto imenso”. Também nós, senhor embaixador, também nós. Por isso adoramos arrotar. Quando comemos, libertamo-nos. Até dos gases. É a nossa catarse.

 

E disse mais outra coisa admirável. E intrinsecamente verdadeira: “Uma reunião de trabalho em Portugal é um desastre. Ninguém diz nada, é para inglês ver. Depois as pessoas abrem a porta e saem – e aí é que começa a reunião.”

 

Novamente olho para a lareira onde arde o quinto cilindro de madeira sintética. Dou nova golada na água mineral e bocejo. Lá fora a água da chuva continua a tamborilar nos vidros das janelas. Distraído, ou talvez não, fixo-me numa frase de Eduardo Lourenço: “Os portugueses tendem a confiar na providência.” Por isso sigo uma sugestão do Expresso e vou para a cozinha tentar combater a crise. Pois é mais do que evidente que não se pode combatê-la com comprimidos.

 

PS1 – Como os almoços e os jantares são as despesas que mais fazem subir o orçamento familiar, devemos confecionar vários petiscos para comer durante a semana. Cozinhar todas as refeições para um ou para dois é um desperdício. Vá ao Continente, ao E.Leclerc, ou ao Pingo Doce e esteja atento às promoções. Há várias durante a semana. Aproveite ainda as feiras que aí se fazem para comprar bom vinho, enchidos e queijo a preços baixos. Se morar junto de um Ikea, pode lá comer por umas cascas de alho.

 

PS2 – Se se der bem com a cozinha e for adepto do Facebook, pode apostar numa interessante estratégia para ganhar algum dinheiro: combine jantares lá em casa, publicite-os na internet, cobre 20 euros por cabeça e aproveite para fazer novos conhecimentos e rever alguns antigos. Se a sua sala for espaçosa e nela tiver uma mesa grande, pode arrecadar 200 euros numa noite.

 

E ainda dizem por aí que o Expresso apenas serve para encher o cesto dos papéis.

24
Out24

Poema Infinito (733): O desastre iminente

João Madureira

IMG_4383 - cópia 2 (8).jpeg 

Sou um dos últimos praticantes da bela e nobre arte do esquecimento. E aqui estou parado a olhar para as paredes. A ordenar as minhas memórias a partir do zero. À medida que a atividade prática diminui, a teoria, pelo contrário, aumenta e começa a brilhar com outra intensidade. Os sonâmbulos e os lunáticos, à noite, demoram-se mais por estas bandas. Os lunáticos entoam cantos intermináveis, especialmente nas longas noites lunares. Não sei consolar. Todas essas palavras me escorregam do pensamento e depois parecem-me fúteis. Sem sentido. Nós sempre a adaptarmo-nos à inflexibilidade. É habitual exagerar a ingenuidade e a inocência dos tempos passados. Assim tem sido sempre. E sempre assim será. Agora ligam-nos e desligam-nos como se fôssemos lâmpadas. Até transformaram o ruído e o barulho em música. Esta música está prenhe de um desastre eminente. Houve tempo em que passeámos de burro pelo meio da floresta encantada. Os gladíolos e outras flores de nomes pomposos não tapam buracos. As emoções agora são mínimas. As fotografias do álbum mostram a passagem do tempo, como se ele não existisse. Esse é o paradoxo da memória. Já os textos estão feitos com todo o tempo do mundo. O poema infinito continua a ser escrito. Sinto o distanciamento de forma desesperada. Sinto frio, uma espécie de frio que não faz sentido. Olho pela janela e vejo um foco de luz. Também isso não faz sentido. Penso numa explicação para sentir surpresa. A distância começou a sua queda em direção ao meu olhar. Também isso não faz sentido. A falta de sentido começa agora a inverter a sua trajetória e a recuperar subitamente altitude. O que é inesperado também possui a sua própria beleza. Tento pensar em palavras que não deixem espaço para o eco. O eco faz-me tonturas. O eco faz eco dentro da minha cabeça. Os ângulos do abandono são mais sólidos do que eu pensava. Fazem chorar o eco que tenho dentro da cabeça e que me provoca dor. Aproveito a luz da tarde para fotografar tudo em redor. O abandono também possui os seus ângulos plásticos. A máquina fotográfica levanta os ângulos disponíveis depois de ser manejada de forma ágil. Os ecos do exterior entram pela casa dentro. São quase impossíveis de fotografar. Opto então por escrevê-los, como se fosse um eco perdido de Munch, porque não sei pintar. O tom das cores do quadro sugestiona loucura. O som da orquestra embala o desespero e a loucura. Está um tempo para cavalos bêbados. A memória da memória começa a saltar por cima dos obstáculos, sem os ver. Sinto agora um ligeiro tremor metálico, por trás das linhas da saudade. A memória sempre em guerra contra a memória. Agarramo-nos às paredes em fogo. Estou no meio de um sonho de guerra. O nevoeiro é intransponível. Oiço o uivo dos obuses. Depois tudo fica em silêncio. A água do esquecimento passa por cima de mim com a sua generalização. O sol começa então a afundar-se no horizonte. E o tempo começa a crescer com a sua audácia invisível. O caos desta ordem desbasta as horas. Umas aves vão. Outras regressam. Outras não saem daqui porque têm medo da vertigem que lhes provoca as alturas. Um pouco mais tarde fechar-se-ão os meses em meu redor. As ruínas estão revestidas de pó e ervas. Tudo iluminado pela luz do desgosto. O som ininteligível da terra começa a tomar conta da tarde.

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