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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

21
Out24

703 - Pérolas e Diamantes: Os desunhados e os estúpidos

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 3 (7).jpg 

As reuniões daqueles que se desunham para mandar lembram-me sempre a última ceia de um bom homem a quem apelidaram de Jesus, o Nazareno. São sempre treze, os que se reúnem à volta de uma mesa, podendo até ser mais, ou, provavelmente, menos. Ou mesmo assim-assim. Sorrisos mordazes, apóstolos a toleimar, e sempre as especulações votivas de quem é que vai trair primeiro o homem. E depois a ideia. A sala de reuniões parece sempre cheia de apaniguados, mas vazia de amizade. A fé é sempre um vestígio. Eu gosto de pensar que se nelas participasse, não trairia. Que seria fiel ao espírito… da coisa. Eu o guardião da verdade e dos factos. Mas a história acaba sempre por dar-nos açoites. Os tais amigos, uns dos outros e de ninguém, são nomes rabiscados em listas de endereços. Os cúmplices estão na lista restrita do iPhone. A traição e a fidelidade não são noções nítidas. Antes fossem, mas… Mas depois cada um mergulha na retórica, na dialética, e os de mais posses acabam mesmo por mergulhar na água clara e desinfetada da piscina lá de casa. A cada um o seu silêncio e o seu esplendor. Exercer esse direito ao ócio é um prazer. Imenso. Do velho registo guardei várias memórias que no presente me ajudam a escrever e a publicar livros. Que as uns servem para leitura e a outros auxiliam a chegar fogo à lareira onde aquecem as partes, comem o presunto com pão centeio e bebem vinho que, mesmo avinagrado, não possui a acidez acintosa da sua frustração e do seu desconchavo. Todos temos o direito à estupidez. É um direito tão democrático como qualquer outro. Cada um tem as suas próprias experiências, os seus anseios legíveis e ilegíveis, a sua sintaxe, o seu ritmo. E a sua própria estupidez. O exercício da palavra pode ser belo, mas o exercício do silêncio acaba sempre por ser mais avisado. A estupidez não pede desculpa, não faz cerimónia, intromete-se. Não respeita, fala alto. Há pessoas que não cabem dentro da sua própria pequenez, da sua irresolúvel mediocridade, da sua conformista visão do mundo. Da sua própria grosseria que disfarçam com verborreia sintética, com gravatas inverosímeis, com fatos azuis e pines comemorativos e autorreferentes. Ou até com calções e chinelas ortopédicas. Muitas vezes somos forçados a pedir desculpa à estupidez para que a estupidez não tome conta das discussões. Uns não percebem as perguntas que não têm resposta e outros não entendem as respostas que não exigem perguntas. Não devemos interpretar a inocência da estupidez ao pé da letra. Nem subestimá-la. Os que se desunham para mandar e os estúpidos mais intrépidos normalmente levantam-se para falar, empregam palavras bem-soantes mas têm sempre pouca coisa para dizer de relevante. Prestam-se à eloquência, mas estão vazios por dentro. Todos somos vítimas dos concursos de circunstância, das decisões dos outros, dos golpes de sorte. E de azar. Andamos sempre em círculos. Os desunhados e os néscios têm os olhares enviesados e os pensamentos cheios de arestas. Olá, eu sou o João, este nome vem de longe, na minha família. Há pelo menos um João em cada geração. Vá lá, estou aqui para contar histórias. Estou farto de ser interrompido. A dialética incomoda-me. E o resto também. Sei perfeitamente o que tenho de fazer: olhar em frente, atravessar a rua, virar na direção do meu destino, manter a lucidez necessária e suficiente para aguentar o firme fio das recordações. Tento mais uma vez entender quantas partes de timidez, quantas de ceticismo e de pudor são necessárias para manter a prosa escorreita. Apesar da acintosidade de alguns, dos tais que até se desunham por mandar, é aqui que quero continuar a viver, é aqui que quero terminar os meus dias, porque, bem vistas as coisas, é aqui que estão as minhas raízes. Foi aqui que a minha prosa começou a ganhar substância, equilíbrio e alguma profundidade. E, talvez, mesmo uma certa simetria ficcional que a aproxima da realidade. Incomoda os desunhados? Bendita seja ela, pois vai continuar a incomodá-los e também a dar de beber aos leitores que fazem o favor de a considerarem escorreita, límpida e sincera. E verdadeira. Sim, também verdadeira. Eu conheço muitas almas e também muitas ruas. Na nossa terra, caros concidadãos e estimados leitores, da realidade mesquinha pouco sobra para especular e extrapolar. Aqui, as experiências novas são como os anos bissextos e as atividades culturais possuem a consistência do fogo de artifício. Pois, mais nada me resta do que continuar a ver os que se desunham pelo poder a deitarem os foguetes e os seus apaniguados a irem apanhar as canas. Um recado lhes deixo, tenham cuidado com as bombas do foguetório pois algumas costumam rebentar com atraso e decepar os dedos das mãos.

17
Out24

Poema Infinito (732): O cato

João Madureira

IMG_4383 - cópia (7).jpeg 

Olho para o cato em contraluz e reparo que está cheio de pó. Provavelmente precisa de ser regado. Nunca sei quando foi a última vez que o reguei. Tenho medo de o afogar com água a mais. Não sei quem me deu o cato. Provavelmente foi um gesto irónico. Olho para os meus pés descalços. Continuam brancos e magros, como sempre foram. O seu peito é alto. O que incomoda quando tenho de calçar algumas botas ou sapatos mais apertados. Agora são mais nítidas as veias. Reparo nos pormenores da casa abandonada, nas peças velhas e estragadas. Reparo nos buracos do caruncho. Olho lá para fora, no sentido do velho caminho de areia que vai dar ao rio. O pó dança na luz. A velha mesa, vista daqui, parece impossível. Era ali que ceávamos quando o avô ainda era vivo. Agora olho para a água esverdeada do rio, a mover-se de um lado para o outro. Os patos mexem com o bico na lama e grasnam. Penso nos movimentos que vou fazer, mas em câmara lenta. É estranho pensar em câmara lenta. Parece que estou num dos filmes de Godard, que eu tanto detestava, mas dizia gostar. Começo a urinar no mesmo sítio onde o fazia em criança para ver onde chegava com o jato. Rio-me. O jato ainda atingiu as urtigas. Mas parou antes de chegar às sanguinhas. Das sebes espinhosas dos muros pendem amoras silvestres. Ainda verdes. Cabos de alta tensão atravessam o vale. E depois os montes. As searas, ainda verdes, balouçam ao vento. Tudo parece em paz. Sinto o sol na nuca e nas costas. Mosquitos esvoaçam à minha volta. Enxoto-os. É inútil. Não consigo evitar um bocejo. Entro no carro para me ir embora. Atravesso a pequena povoação. Tudo parece diferente visto aqui de dentro. A estrada está agora alcatroada. Observo as pessoas que passam lá fora. Uma velha de bata preta, com as mãos fincadas nas ancas, observa o seu marido que teima em regar o jardim. Um jovem casal empurra um carrinho de bebé por um caminho estreito. Dois rapazes pedalam nas suas bicicletas e fazem curvas sem porem as mãos no guiador. Gritam. Fecho momentaneamente os olhos e sinto o carro vibrar. Depois de abrir os olhos reparo nos insetos esmagados no para-brisas. Abro o vidro da porta e ponho o cotovelo de fora. A turbulência é agradável. Ou, pelo menos, tento pensar que sim. Lá fora passam os campos, as florestas, os postes de eletricidade e dos telefones, as ruínas de uma serração, barracas de plástico onde se cultivam cravos vermelhos e outras flores agora inúteis e sem cheiro. Antes fossem de plástico. Lá mais ao fundo, num lameiro murado, uma criança vestida como um jóquei, palra, agita as mãos e monta num pónei. Chego a casa e sento-me. Espreito lá para longe, pela fresta da janela. Um grupo de crianças atira uma bola para um lado. E para o outro. Registo tudo em câmara lenta. Lembro-me outra vez de Godard. E que nunca o consegui suportar. Não sei como hei de registar a gritaria das crianças. As memórias são cada vez mais finas. Os seus cortes são cada vez mais fundos. Algumas são apenas gotas de orvalho que se vão evaporar com o sol da manhã. O tempo zune regularmente. Olho para os catos. Estes são mais elaborados. Estão sob um naperon que a mãe bordou quando estava grávida da Júlia e não conseguia adormecer. O candeeiro em cima da mesa lança um círculo de luz brilhante sobre o tampo da mesa. E sobre o naperon. Faço um chá de camomila. Não sei porquê. Deixo-o ali a fumegar na chávena. Abro o frigorífico. Pego numa cerveja fresca. Abro-a. Também.

14
Out24

702 - Pérolas e Diamantes: Vá lá, vamos embora...

João Madureira

 

Apresentação3-2 - cópia (2).jpg 

E por aqui ando (andamos?) a imitar o mundo. Às voltas. Umas vezes tenho frio. E outras calor. Aprendi, lendo os escritores de bolso, que os rododendros florescem em maio e os crisântemos em setembro. Todos gostamos de jogar ao faz-de-conta, crianças incluídas. É saudável manter uma certa distância da realidade. Uns brincam à guerra, no meio da paz. E outros brincam à paz, no meio da guerra. Ninguém quer estragar as férias. Afinal o que é mais importante, a guerra, a paz ou as férias? A pomba desta paz é forjada a aço. E o ponto de interrogação é feito em barro. Vá, vamos lá dividir a guerra e partilhá-la como se fosse uma pizza. Não, não e não, nós gostamos é de cozido à portuguesa. Por aqui os passarinhos cantam e o sol brilha. Por cá o gosto musical é uma coisa estonteante, oscila entre as músicas do bacalhau e o alho e as canções de abril. É como misturar mirtilos e rabas. Qualquer dia Jesus volta a ressuscitar e a paz ressuscitará com ele. Os céticos entrarão em desespero. E os crentes em delírio. O papel de Judas continuará a ser ingrato. Como sempre. Um futuro luminoso espera-nos lá mais para a frente. Porquê desistir agora que estamos prestes a chegar? Nós aqui estamos para destruir o paradoxo de Zenão, imbuídos no pensamento profundo que nos permite meditar sobre o infinito, o movimento, o conhecimento, o tempo, o contínuo, a reta, o número, etc. Alguém sugeriu que, para sobreviver, se deve macaquear as ideias que os outros têm de nós. A ruralidade também tem os seus atrativos. Dizem. E nós fingimos que acreditamos. Continuamos a não pensar aquilo que dizemos e a não fazer aquilo que pensamos. E assim vamos sobrevivendo, enquanto sociedade. Nos contos alemães, recolhidos pelos irmãos Grimm, é frequente as heroínas e os heróis encontrarem a felicidade só depois de realizarem trabalho árduo e de viverem com sobriedade. Além de terem de beijar sapos e de cuidar de velhos maus. Só após estas agruras é que acabam por ser recompensados. Nos contos portugueses, os nossos heróis e heroínas são, ao mesmo tempo, preguiçosos e astutos. Ou dormem, fazem que trabalham ou passam o tempo sem mexer uma palha. Evitam qualquer esforço que lhes seja pedido, ou sugerido, falham os compromissos e confundem sempre tudo. O seu máximo objetivo é que os deixem em paz. E sossego. Nunca beijam sapos ou cantam lindos madrigais. Quando recebem o reino, a princesa ou o príncipe de bandeja, é porque jogaram no totoloto ou compraram a lotaria do Natal. Somos sonhadores porque a realidade é deprimente. E somos deprimidos porque os nossos sonhos são irrisórios. Nem nisso somos grandes. Os portugueses têm alma de cuscos, de vigilantes. Afinal não é necessário fazer nada, além de se sentar numa cadeira e olhar em seu redor, ou para um monitor. Esse trabalho esgota-se com a simples presença do vigilante, conferindo-lhe respeito e responsabilidade. E ali estão eles, parados, envergando uniformes bem visíveis. Por vezes usam auscultadores ou pequenos microfones, para impressionar. Outras vezes comportam-se como crianças, compram caixas de fósforos e põe-se a brincar com o fogo. No verão o país arde como se estivéssemos num filme de ficção-científica. Ainda ninguém conseguiu descobrir quem está por detrás disso. A telenovela dos bombeiros passa então nas televisões em horário nobre. E o povo, sentado no sofá, ri, chora e dá peidos conclusivos. A felicidade faz-se destas pequenas coisas. Por causa de tanta televisão, é óbvio que os portugueses sofrem de dissonância cognitiva, as suas perceções têm pouco a ver com a realidade, por vezes são mesmo incompatíveis. E lá fora a realidade a dizer-nos que muitos portugueses andam à procura de emprego, de um infantário ou de uma escola para os filhos, ou de um apartamento para arrendar. Todos à procura da chave da porta que dá para o futuro. Os portugueses a quererem passar à sala seguinte. E os emigrantes a quererem ocupar a despensa, por falta de melhor espaço. Já muitas pessoas se sentem mal com o seu corpo. E até com o seu caráter. E a sua inclinação. Uns acham-se demasiado largos, outros demasiado gordos, e também há os que enchem a pele do seu corpo com tatuagens complexas. “Vá lá, vamos embora.” “Ainda não. Ficamos mais um bocadinho. Saímos logo a seguir.”

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