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As pessoas daqui são sérias e indiferentes. Estão imersas numa mudez feita com uma carapaça de dor. A sua pele parece madeira seca e rachada. Os seus sorrisos fazem lembrar arame farpado ferrugento. Um manto de nuvens, pesado e profundo, paira sobre a aldeia. O sol clareia lá ao longe, perto da nascente do rio. Carvalhos velhos, cheios de geada, erguem-se acima dos lameiros que já foram um pasto comunitário. Perto de uma vala de água voam dois pássaros negros e brilhantes como carvão. Abrem as asas e levantam voo, desenhando uma curva apertada. Entretanto, voltam a pousar. O seu canto ecoa até que o vento o leva para longe dali. O vento sopra, cortante. As cores estão esbatidas. A luz parece não ter força para as animar. É de manhã, mas parece que o lusco-fusco está para chegar. Nos pequenos lagos dos caminhos, as rãs e as relas esperam um sinal para iniciarem a reprodução da espécie. No cimo dos montes, as hélices brancas das turbinas eólicas giram como se fossem lentas máquinas vivas. Atravesso os campos para chegar ao leito do rio. Nalguns pontos, a manta de vegetação foi arrancada. Os javalis revolveram-na. O pipilar de uma calhandra-real anuncia a primavera. Olhando para as terras em redor, a nova estação do ano parece quase implausível. Oiço o gorgolejar da água. Entro na floresta. Sinto-me a mergulhar no silêncio desconhecido do seu interior. O chão tem ainda os restos de folhagem murcha do ano anterior. Deito-me a descansar. Algumas plantas estão próximas de se abrirem em flor. Um golpe de vento passa pela copa das árvores. Uma raposa foge para longe. O céu clareia. O círculo pálido do Sol brilha por entre o teto de nuvens. Os pássaros fazem mais ruído. Tagarelam as pegas. Piam os tentilhões. Cantam atrapalhados os melros. E, um pouco mais abaixo, escuta-se a melodia melancólica dos pintarroxos. A paisagem ainda parece a mesma da minha meninice. Continua tranquila e ordenada. As poças de água refletem as cores e as formas de tudo o que as rodeia. No solo mais pobre, as azedas, derreadas pelas chuvas dos últimos dias, formam madeixas. O rio segue silenciosamente o seu curso desenhado pelo tempo. Tudo parece remoto. As áreas de cultivo. Os lameiros do gado. No céu encapelam-se nuvens que parecem castelos de algodão. Sinto-me a passear pelo início da criação. Após a monocromia das últimas horas, o voo das aves, à luz repentina do Sol, enche o mundo de cores exóticas. Depois de muito caminhar, chego de novo à aldeia. Nalgumas das casas habitadas, veem-se cortinas penduradas nas janelas, carros à entrada, galinhas a debicarem o chão. Tudo parece anacrónico, negligenciado. A igreja conserva-se no vácuo. O Sol continua a brilhar, mas ainda não aquece. Penso no calor da lareira. Junto a algumas casas crescem heras e urtigas delicadas, de penugem clara. Uma neblina leitosa paira sobre o povoado. A norte, um trator ara a terra seguido por uma nuvem de pó. No céu azul, cirros macios velam os aviões que deixam atrás de si rastos evanescentes de condensação. Milhafres volteiam lá no alto. Sobem, descem, guinam e giram. A terra parece respirar em fôlegos suaves e longos. Regressa um silêncio dominical. O telemóvel tem outra vez rede. Marco um número. Um cão começa a ladrar. Adultos arrastam atrás de si uma criança pequena ao longo do meu campo de visão. Quando o táxi aparece, começam a cair flocos de neve.
Nós andamos na vida a contar histórias uns aos outros, poucas delas verdadeiras. Apesar dos nossos semblantes civilizados e cheios de pudor. Muitas são fruto da nossa fantasia, outras tantas são contadas por outros. Todos sabemos que é muito duro convencer os céticos. Por vezes é difícil fazer encaixar uma história na anterior. Por vezes, as coincidências são bem-vindas, outras vezes nem tanto. Há que dosear as revelações, se não a história chega rapidamente ao fim e lá morre a Xerazade. Os lapsos de atenção fazem o resto. Por vezes, a nitidez das recordações faz com que as histórias percam a espontaneidade e até tenham pouco a ver com o que verdadeiramente aconteceu. Delas nascem as melhores histórias. Nelas, a prosódia fica entaramelada, as inspirações e expirações adquirem ritmos estranhos e as consoantes fricativas passam a ser ciciadas como se tivessem um sabor excêntrico. Já a poesia, sobretudo a minha, baseia-se na penitência e no peso da contrição. Não foi em vão que o menino aprendeu a ler pelas orações dos santinhos, ao som cadenciado das rezas da mãe. Em muitas histórias falta liberdade criativa e sobra o tédio convencional. Há histórias que são velhas e parecem navios lentos. Outras limitam-se a contar a verdade dos factos e por isso parecem anémicas e pálidas. Outras, ainda, possuem tantos detalhes e berloques que se assemelham a toalhas de mesa bordadas à mão. Existem ainda histórias tão doces e naturais que parecem tratados de física e química escritos para crianças e jovens. E eu a matutar na gente do bairro. E nos Nunos, e nos Franciscos e no Joões e nas Marias e Rosas e Fátimas, que tentam arranjar, ainda a tempo, uma identidade bem próxima da nossa, que também nos chamamos assim, mas não somos assado. Tudo parece quase autêntico, fora as mentiras. As mentiras não traem as expectativas. As famílias do bairro não traem os traidores. Por vezes, são os sorrisos, quase adolescentes, que traem. Os traidores. Que nos enganam. Ou quase. Eles, e elas, que nestas coisas são vinho da mesma pipa, então levantam-se, saúdam-nos com um afeto afetado, e quase eufórico, e sorriem com uma plasticidade tão falsa que nem o botox engana. Mas aquilo não passa de espuma de sangria feito com gasosa de marca branca, vinho frisante e cerveja quase fora de prazo. A sua fraternidade tem a sinceridade de Judas, ou Brutus. Ou Salomé. É difícil não gostar deles, pois são homens e mulheres sociáveis, quiçá expansivos, mas de uma ingenuidade que nada tem de ingénua. Mas, caros amigos, a sua integridade é apenas formal. A sua argumentação amalgama a verdade. Trabalham sem conceitos. Quem mantém a realidade dos factos à distância, não é gente de confiança. Tudo nos pode parecer aleatório, só que o não é. Por vezes até entram na divisão da casa onde costumava estar a verdade, mas ela já lá não se encontra porque a mandaram para a reciclagem. Dizem que o homem democrático deve ser artista. Mas a forma da criação artística exige disciplina mental. Isso implica ter de fazer escolhas independentes, que é algo fundamental na gestão de uma democracia. A gestão de uma instituição não obriga à traição. Dos princípios. E até da amizade. Por vezes não é a constituição frágil de um escritor o que define a robustez da sua escrita. É sempre melhor a experimentação do que a imitação. Essa é a base da verdadeira aprendizagem. Eu continuo a querer abrir os olhos, mesmo quando mos querem fechar. A modinho. Era o que mais faltava. Eles que se benzam na água benta turva com que enchem a caldeirinha com que borrifam a multidão. Apesar da verborreia, as alusões culturais parecem imagens paradas colocadas de forma sequencial para simularem movimento. Depois anexam-lhe os títulos. E já está. Eu não preciso da sua permissão para continuar e pensar. E muito menos para continuar a escrever. O aconselhado seria fazerem eles uma colonoscopia à sua prosápia. E sem anestesia geral, para saberem como essas coisas doem. Que se benzam, que se confessem, que se arrependam batendo com a mão no peito. Que se ajoelhem ou até que façam a peregrinação a Fátima com sapatilhas topo de gama, aos tropeções. A salvação não é uma coisa que se compra na farmácia ou no supermercado. A salvação é uma história. E por aqui andamos nós a contar histórias uns aos outros, poucas delas verdadeiras…
Até as mensagens dos anjos são levadas pelo vento. Já as de Deus (e dos seus deuses) ficam presas nas rochas do mar. E quem se lixa é o mexilhão. Isto já vem de longe. As palavras antigas transformaram-se em rumores. Do ofício nasceu a arte. Continua a ser necessário conciliar o princípio com o fim. E o pensamento cíclico com o linear. Com a verdadeira luz, todas as gradações de sombra desaparecem. No entanto, apenas os contrastes oferecem clareza. O vento continua a soprar sobre as montanhas. A luz continua a irradiar em todas as cores. O problema surge sempre quando a escuridão ataca a luz. E os deuses a gerarem filhos atrás de filhos, dispersando a luz em partículas. A purificarem todo o brilho que se liberta da escuridão. A criarem a via láctea e novos ciclos de nascimento. Todas as almas nascem dessa luta. Muitos anjos começam a cair do céu por causa da doença provocada pela abstinência. Cheios de borbulhas infetadas e amarelos de febre. Para nada lhes serve a sabedoria repetitiva das orações, o manuseamento dos velhos e magníficos códices ou as sangrias receitadas por Deus. O seu mal é de amores. Eles, os pobres anjos, a desintegrarem-se em partículas de luz que são de imediato engolidas pelos buracos negros. Tudo a ser separado de novo entre bem e mal. Ei-los ali a arderem cheios de radiação. Mudos, de asas quebradas. A estrebucharem. Alguns choram porque chegaram à conclusão que as almas também são mortais. A verdade e o conhecimento podem ser tremendos. Isso até Deus sabe. Todos desconfiam do tempo. Viram Deus a alimentar-se de limites, de círculos celestes, de órbitas, de elipses estelares, de planetas, de nebulosas espiraladas, de aglomerados globulares, de galáxias, de buracos negros, de futuro, de números e fórmulas. Dos restos da essência do conhecimento. Por isso enlouqueceram, sem se aperceberem. Começaram a adoecer quando começaram a duvidar do tempo. E também quando se sentaram a observar o crescimento e a proliferação do vazio. Do vazio insustentado, preso ao instante onde tudo começou. Observando as explosões, o espaço a expandir-se, os átomos a surgirem do nada e a criarem o tudo. O início a perguntar pelo fim. O cosmos a expandir-se e a acelerar. De onde vem isto tudo? Para onde vai tudo isto? Os anjos continuam a cair do céu. Como meteoritos, fazendo tremeluzir a luz do meio-dia do Sol do deserto e evaporar as correntes torrenciais dos rios Tigre e Eufrates. A água sobe aos céus, enquanto os anjos caem sobre as suas terras de origem. Estragando as colheitas, derrubando as casas de adobe, incendiando os palácios, libertando das jaulas dos jardins zoológicos os minotauros e os leões alados. As almas vagueiam ao deus-dará. Os anjos estão perturbados, apenas conseguem distinguir silhuetas cintilantes do lado de dentro das suas pálpebras. Os anjos estão cegos. E loucos. Muitos caem dentro do vazio, ou no caos por ele provocado. Deus continua caprichoso a ver as imagens do tempo a cristalizarem-se. Ali, infinito e inútil, como o menino Jesus. Disfarçado de último profeta a fustigar os anjos como se fossem os seus cavalos alados. O problema dos anjos surgiu quando exigiram provas da criação ao seu putativo criador. Quando, desorientados, insatisfeitos e desiludidos, começaram a praticar a ascese, renunciaram a Deus e foram levados pelo vento, pela peste e pelas maldições. Foi quando começaram a chover do céu. Assim acabará tudo. O apocalipse é Deus.
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