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O rigor. O rigor do vento abre brechas nas imagens dos corpos. A sombra encosta-se à brancura da parede. O rigor. O rigor da luz atrapalha os olhares. Fecho os olhos pelo excesso de luminosidade. Durmo em cima de pretextos. Lembro-me do teu corpo. Dos teus lábios. Do rigor. Do rigor vermelho dos teus lábios. Do teu sexo. Do rigor. Do rigor das palavras. Do rigor. Do rigor dos versos. Do rigor. Do rigor dos comentários. Dos contextos. Lembro-me de Amarcord. Da sua falta de rigor. Da música do Nino Rota. Lembro-me do lugar onde vem morrer a luz dos astros. Dos gritos rápidos dos amores antigos. Da ânsia. Do rigor. Do rigor da ânsia. Do lento crepitar da lenha na fogueira. Do cheiro húmido do litoral. Das almas imóveis. Da alegria a arrastar-se para lá do Natal até chegar ao Ano Novo. Do rigor. Do rigor de Deus. Do rigor do frio. Do rigor rigoroso da gramática dos Lusíadas nas aulas de português no Liceu. Eu a aproximar-me mais da compreensão total dos corpos do que do extensíssimo poema de Camões. Ó chatice imensa! Ó rigor indeciso e transitório! E o senhor padre a ordenar a substância nominativa da hóstia (corpo de deus) e do vinho (sangue de cristo). Os presságios perseguiam-nos. Lembro-me do estímulo agoirento dos sonhos. E das rezas. E dos defumadouros. E das benzeduras. E dos beijos mordidos pelo pecado. E do pecado mordido pelos beijos. E pelo rigor inquisitivo da confissão. E do rigor. Do rigor de nos ajoelharmos na laje fria da igreja. Do rigor frio da água-benta. Da imprecisão das vigílias. Da masturbação. Da estranheza frontal da primeira ejaculação. Ai o rigor! O rigor da virgindade. O rigor do pecado carnal. Os lábios a beijarem uma vagina. O rigor. O rigor da fronteira do pecado. O rigor. O rigor da divindade. O rigor. O rigor avesso dos preservativos. A abjuração. O estigma. O seu rigor. O rigor da lucidez. O voo das palavras. O rigor do poema. O rigor dos poemas breves. O rigor dos poemas longos. O rigor. O rigor da rigorosa arte de escrever sobre o rigor. A solidão. Os axiomas. A estupidez rigorosa dos axiomas. O rigor das ruínas. O rigor da morte. O rigor das horas a preto e branco. O rigor do rigor mortis do avô, da avó, do pai, da mãe, dos tios, dos primos. A escandalosa falta de rigor das metáforas. Da realidade. Da lógica. Da luz dos livros. Dos livros da luz. Dos objetos que se liquefazem. Da música. Do silêncio. Da inquietação. Da água. Dos enigmas. E a poesia a entrar pelos filmes do Fellini dentro. E pelos do Kusturika. E a dinamitar os filmes do Manoel de Oliveira. E a fazer implodir os filmes de Godard. E a sua intensíssima falta de rigor. E eu a passar por cima do rigor da religião, da educação, da política, do fascismo e a escrever sobre mares e marinheiros e cidades longínquas e abismos e sonhos. E a passear em volta da poesia japonesa sem ter coragem para lhe tocar. A olhar para o rigor da sua construção e a pensar que aquele rigor, afinal, não tem rigor nenhum. Provavelmente é necessário perguntar pela perfeição do silêncio. Não pelo seu rigor. Não pelo rigor da poesia que se escreve sem rigor. Aprendi então a embaraçar-me nas palavras e a desembaraçar-me dos silêncios. Dessa forma faço poesia. Aprendi que não devemos desenhar fronteiras entre a evidência e a surpresa. Afinal, que espécie de deus é este que nos assiste? Que falta de rigor o seu!
E por aqui andamos nós a partir e a repartir reinos imaginários. Vivendo perto do incómodo e da aventura. Como as personagens torturadas dos livros do John Le Carré, aliás David Cornwell, sem sabermos lá muito bem o que é o bem e o que é o mal. Neste mundo ambíguo tudo é de esperar. A verdade é que os maus, por vezes, mudam de razão, de verdade e até de lugar. E, para mal dos nossos pecados, o mesmo acontece com os bons. É cada vez mais difícil distingui-los. O mundo está cheio de histórias falsas, que nos parecem verdadeiras, por estarem muito perto da autenticidade. Dizem que há por aí muito anjo à solta, perdido na sua orientação, a fazer-se passar por homem, mulher ou uma outra coisa entre essas duas, que podem até ser três. Ou coisa nenhuma. São Paulo dizia, “a verdade vos libertará”. Mas qual delas?, pergunto eu. E por aqui andamos perdidos entre o jogo da verdade e da mentira. A ver as autoridades a atropelar as verdades e, por vezes, até a justiça. Esta é a terra dos sedutores baratos e dos cavaleiros andantes que não saem do lugar. Onde ainda se tratam os marialvas de província com a deferência de “senhores”. Entretanto eles comem o seu bife “à casa”, bebem da sua garrafa de tinto duriense ou alentejano, e ficam cheios de uma euforia nostálgica que os faz dar urros por dentro. E cá vamos sobrevivendo, eles e nós, nesta terra de brandos costumes, onde as famílias se conhecem umas às outras, onde se tem sempre um primo no governo, outro na oposição, um na esquerda e outro na direita. Neste Portugal outra vez muito queirosiano, a fazer lembrar Os Maias e A Capital, cheio de amigos dos Dâmasos e dos Acácios, numa amálgama de mafiosos experimentados, mas inoperantes. O problema ainda se agudiza mais quando os revolucionários nos saem ainda piores que os reacionários. País cheio de socialistas diletantes, de sociais-democratas que mais não são do que liberais reacionários e admiradores de padres, freiras e sacristias, de centristas amaneirados, de antidemocratas que são piores que grunhos e de comunistas tão light que já nem servem para pintar paredes. Isto até pode ser uma terra de bastardos, mas de bastardos ilustres. A velha monarquia espalhou-os pela nossa história ao deus-dará. A velha fidalguia entretém-se agora a matar pombos com uma Flaubert e a fazer armadas de papel para iniciarem batalhas navais nas banheiras, com os seus filhos ou netos. A causa monárquica continua a ser uma coisa de forcados e fadistas que não sabem o que fazer com o tempo que sempre lhes sobra às mãos cheias, mas com os defensores dos direitos dos animais à perna. Com guerreiros destes não vamos a lado nenhum. E não vale rir, isto não é nenhum filme de animação em 3D. O povo povinho povo até podia ser bom, se não o estragassem com mimos. Vá lá, não se riam de novo, esta não é uma tirada humorística. Provavelmente, é mesmo o povo que não merece os dirigentes que tem. A muitos, nós não os queremos, por despeito e falta de educação… democrática. E eles, sentidos, porque quem não se sente não é filho de boa gente, lá vão para a Europa exercer cargos importantes. Este povo nunca mais aprende. Ó lágrimas de Portugal, quanto do vosso sal são tretas do Fernando Pessoa ou até do Manuel Alegre! Não te metas com os bonzos, João Madureira, não te metas com os bonzos! O respeitinho é muito bonito. Não te deves meter nem com os bonzos do regime. E muito menos com os poetas do cânone. Estás aqui, estás a apanhar. Vamos lá, então, dentro das nossas humildes possibilidades, dar a volta ao texto. Vamos imaginar que estamos no recreio da nossa velhinha escola primária e a cantar: “Atirei o pau ao gato-to / Mas o gato-to não morreu-eu-eu / Dona Chica-ca assustou-se-se / Com o berro, com o berro que o gato deu…” Pronto, já está tudo no seu devido sítio, mas nada em ordem. Não vá o sapateiro além da chinela. E os deuses das pequenas coisas entretidos a verem os anjos a esvoaçarem e a cantarolarem hossanas em volta das nuvens onde se sentam. Só que, por vezes, quando se mudam os adereços e os cenários, muitos costumam cair das suas cadeiras, que eles julgavam tronos, abaixo e lá vêm os outros tomar-lhes o lugar. Sim, por vezes o mundo é mau, mas é mais bom que mau. E isso também depende de nós.
Afinal de quem eram as palavras que O. M. ouvia? Por que razão tinha uma reação excessiva à realidade? De quem era aquela linguagem? Porque estalava ele os dedos quando o levavam pelos corredores da prisão interna para os interrogatórios noturnos? Porque piscava os olhos para os outros, sabendo que esse gesto simbólico significava “fuzilar”? Porque trocava ocasionalmente comentários amedrontados, ele que era a coragem em pessoa? Qual a razão de se deixar afetar pelos discursos solenes do investigador sobre “crime e castigo”? Qual a vocação essencial para se ser carcereiro ou se ser especializado em trabalho de interrogatório e tortura durante a noite? Por que razão é que as vozes que O.M. julgava ouvir eram masculinas e grosseiras? Por que razão os presos políticos eram constantemente ameaçados com os “tormentos da consciência”? Por que razão os amigos e conhecidos de O. M. eram presos e incriminados, mesmo não tendo havido denúncias? Qual o motivo por que Anna Andréevna escreveu os versos: “Lá, atrás do arame farpado / No coração da densa taiga / a minha sombra é levada a interrogatório…”? Qual a razão de em determinadas circunstâncias não ser possível exibir qualidades morais elevadas? Qual a razão de O. M. ter uma excitabilidade excessiva? Será que tinha uma predisposição para as doenças mentais? Porque é que as pessoas agem contra a sua consciência? Será que um poema, como diz O. M., começa quando os nossos ouvidos captam um som insistente, primeiro sem forma definida e depois formando uma frase musical precisa, mas ainda sem palavras? Por que razão O. M. tentava livrar-se desse som abanando a cabeça como se o pudesse deitar fora como uma gota de água que nos entra no ouvido quando estamos no duche? Qual o motivo porque O. M. pensava que se o poema não se desprendesse era devido ao facto de alguma coisa estar escondida dentro dele e por isso o trabalho não estar concluído? A sua voz interna calava-se? Por que razão todos os primeiros ouvintes dos poemas de O. M. acabaram por ter um destino trágico, tendo passado pelas prisões e pelos campos de concentração? Por que razão se executavam poetas na URSS? Seria porque o amor à poesia exigia certas qualidades mentais que no país de O. M. condenava as pessoas à morte, ou, na melhor das hipóteses, ao exílio? Por que razão estranha apenas os tradutores eram autorizados a viver? Seria pelo facto de o processo de trabalho de tradução ser diretamente oposto ao verdadeiro processo de escrever poemas? Será verdade que a tradução vulgar é um ato de verificação, frio, racional, através do qual se imitam alguns elementos da escrita de poesia? Será que o poeta O. M. sabia disso? Será que Nadejda Mandelstam, contra toda a esperança, disse isso ao poeta que ouvia vozes sem saber de onde vinham? Por que razão ele e Nadejda estiveram juntos na prisão a reunir cuidadosamente as películas de realidade que iam sobrando do que se passou na Lubianka durante a investigação? Por que razão O. M. cortou as veias com uma lâmina Gillette que tinha escondida na sola dos sapatos? Por que razão o canalha Khristoforych disse a O. M. que para um poeta o sentimento de medo é útil, que o medo contribui para fazer surgir a poesia? Por que razão também o investigador foi fuzilado? Será possível discutir o impulso para imaginar poemas escritos num estado de raiva e indignação? Será que Óssip Mandelstam morreu? Será que Nadejda Mandelstam continua a procurá-lo no meio da taiga, em valas comuns, entre deuses e demónios? Para onde foi todo aquele medo? Por que razão aquela revolução fez correr dilúvios de sangue perante a cegueira de todos, sobretudo dos intelectuais? Será que aquele medo ainda anda por aí?
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