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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

30
Dez24

Pérolas e diamantes: Roupa velha

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 8 (15).jpg

Já várias e distintas pessoas me perguntaram por que razão é que eu escrevo, dado que a escrita não me dá pão nem consolação. Eu respondo-lhes sempre com uma frase de Chesterton: “Escrevo, porque é preciso.” É esta a minha íntima filosofia.

Depois desta outras perguntas se lhe seguem, as quais evito escutar para não ser forçado à grosseria de mentir ou não responder. Perante a adversidade prefiro pensar que não há mal que sempre dure.

Hoje de manhã tive o impulso de um homem banal, e sinceramente tolo, pois deu-me para vestir fato e gravata, compondo com esmero a gola do casaco, de modo a que ela não destoasse da linha com que foi talhado e engomado. E saí à rua cheio de frivolidade, imbuído do espírito sublime de me manter direito entre os aprumados colarinhos da minha camisa e em equilíbrio dinâmico com o nó da minha gravata.

Mas rápido voltei para casa, pois senti-me deveras incomodado. O meu exercício de hipocrisia fez-me sentir estúpido. Definitivamente vesti as minhas calças de ganga e o meu polo azul e disse para a minha imagem fixa no espelho: “Eu sou o que sou.”

Depois ri-me baixinho. E perguntei à minha imagem parada no espelho: “É possível enganar o mundo?” Ao que ela respondeu: “É. Mas não te esqueças que a consciência do justo não é perturbada.” “E a culpa. Onde fica a culpa do passado?”, perguntei atrapalhado. Ao que a minha imagem parada no espelho respondeu: “A consciência do justo espera sempre.” “Deus do céu, pareces um evangelista!”, retorqui. A minha imagem riu-se muito.

“Mau Maria”, pensei eu. Tenho de admitir que hoje não acerto com nada nem coisa nenhuma. Mas mal remediado mal passado. Sobre o passado é melhor dar um ponto na boca. Com águas passadas não mói o moinho. Ou…

“Mau Maria”, voltei a pensar. Não consigo acertar com a minha imagem.  

Fui para o monte tirar fotografias. Mas acabei a apanhar flores. Flores silvestres. E deslumbrei-me com a sua condição. Elas para ali a nascerem, entre giestais e silvados. Pensei nas que são colhidas nos jardins, com muito esmero e carinho para serem centros de mesa ou adornos de lapela. Vieram-me à memória os versos de Ungareti: “Entre uma flor colhida e outra dada, o inexprimível nada.”

E a minha imagem, agora refletida no espelho da viatura, a azucrinar-me o espírito: “Menos política e mais romance. Concentra-te.” Entusiasmado meti-me no carro, rodei a chave da ignição e carreguei no acelerador, mas não mais do que o necessário para não voltar a ser multado por excesso de velocidade. E ri-me para a minha imagem no espelho. Quem não me conhecesse a mim e ao meu ar sisudo pensaria que era tolo.

A imagem disse-me assustada: “A pequenez das atitudes e dos valores de algumas pessoas está na razão inversa da grandeza das suas palavras.” Apeteceu-me partir o espelho, mas optei por orientá-lo de forma a que não fosse possível rever-me.

Depois pensei no estilo, no estilo da escrita, no estilo do discurso, no estilo da roupa e no estilo de estar sentado a uma mesa. E a imagem voltou a atormentar-me. Desta vez vi-me refletido no vidro da porta do carro. E a minha cínica imagem a incomodar-me, qual grilo falante: “O estilo é uma bonita forma de encobrir certos pensamentos.”

Hoje a minha consciência tornou-se arreliadora: “Faz honra ao teu caráter de transmontano. Um homem sério tem obrigação de ser franco e verdadeiro. Deixa-te de trampolinices. Por mais que queiras, não consegues ser artificial. Deixa-os. Tu não consegues servir-te das palavras para esconderes os pensamentos.”

E a minha imagem no retrovisor a rir-se desalmadamente: “Já que colheram as flores, deixa-os que colham também os espinhos. Bem o merecem. E eles cheiram tão bem!”

Eu disse: “A questão é toda moral.” Ao que a minha imagem trocista respondeu: “Então que a resolvam os moralistas.” De novo olhei para a estrada e fixei-me no risco contínuo.

Sim, a ficção acabou. Afinal não há heróis, nem heroínas. Em toda a parte se come, conversa-se, passeia-se, dorme-se da maneira mais trivial possível, dizem-se meias verdades, engana-se a razão, destroem-se os sonhos na proporção inversa dos sorrisos. Dos falsos sorrisos de ocasião. Os episódios poetizados de batalhas e desafios brilhantes não são possíveis.

E eu para a minha imagem: “Então, e a moral? E a diferença?” E a minha arreliadora imagem: “Se queres que te diga que existem, eu digo-te que sim para ser simpática. Mas em abono da verdade lembro-te Camilo Castelo Branco: «Dantes a imoralidade era a retalho, hoje é por atacado.» Ou se preferires cito-te La Fontaine: «O ridículo precisa de ser morto pelo ridículo.» E eles, todos eles, são tão ridículos. Deixa-os. Que se consumam. Que se queimem no seu próprio fogo.”

E eu para ela (para a minha imagem, claro): “Deslarga-me. Deixa-me em paz.”

E ela: “Não te armes em cândido.” E voltou ao Camilo: “A candura tem os seus pedantismos, assim como os pedantes, às vezes, têm canduras irrisórias. São os extremos que se tocam.”

E eu: “Deixa-os tocar-se. Merecem-se. É tudo vinho da mesma pipa.”

E então a minha imagem desapareceu por entre a luz e a escuridão. Nos lados da estrada, as árvores apareciam e desapareciam como fotogramas de um filme francês. Voltei para casa em paz e sossego.

 

PS – Já em casa, no remanso do lar (maumaria), estava eu a lavar os dentes após o jantar, quando me virei para o meu espelho e lhe perguntei: “Espelho, espelho meu, há alguém mais medíocre do que eu?” O meu espelho partiu-se… a rir. E isto é mau agoiro.

26
Dez24

Poema Infinito (742): Alice cheira o medo

João Madureira

ORIGINAL (10).jpeg 

Alice comeu ontem muito doce de framboesa. O que não é comum. A desculpa foi que estava doente. Deram-lhe algumas pequenas colheres de remédio. Santo. A parte santa tinha fiapos brancos. E tinha também sabor a hóstia. O Coelho Branco fartou-se de dar saltos. Nervoso. A Alice descobriu que misturar doce de framboesa com pão ázimo e remédio não ajuda na entropia. As misturas nem sempre são felizes. A felicidade nem sempre se baseia na entropia. A entropia nem sempre vem nos livros. Nos livros, as mães e as avós e as tias e as primas e até algumas criadas costumam cantar, para a doença aliviar, as pombinhas da Catrina. Uma é sempre de alguém. A do meio é tua. E a outra é minha. Ou seja, é da Alice. Já lhe está a descer a febre. Ontem, quando foi a banhos, enjoou na viagem de barco. Foi à vinda. O sol estava forte. Ela constipou-se e ficou fanhosa. Depois veio para o castelo de carroça. Madame B. foi buscá-la e prendeu com laços cor-de-rosa os bandós da menina. Madame B. está um pouco gorda. Molly Bloom está um pouco gorda. Alice está um pouco gorda. A criada portuguesa está um pouco gorda. A criada inglesa está um pouco gorda. A criada angolana está um pouco gorda. Alice pôs-se então de cócoras e começou a brincar com a sua linda boneca de cera de olhos azuis. A madrinha enviou-lha de Paris. Ela gosta de amachucar o seu vestidinho de fustão. E de dar brilho aos sapatinhos de verniz. A boneca não é forte, mas tem boas cores. Depois despe-a e dá-lhe banho. Frisa-lhe os cabelos com papelões e um ferro quente. À moda antiga. O cabelo ficou estranho. A boneca acaba por desfalecer. Diz então à criada inglesa que a meta numa caixa de sapatos e a vá enterrar no cemitério onde estão sepultados os seus antepassados mais antepassados. Durante a noite sonhou com o colégio onde andou até há bem pouco tempo. Quando a camioneta a vinha buscar, nas manhãs de névoa que envolvia tudo. Ela lá ia toda enroupada, com um bibe largo por cima de todas aquelas farpelas. De pasta às costas e com uma lancheira na mão esquerda. O colégio era um edifício pintado de um cor-de-rosa violento. Numa tarde, já um pouco longínqua, a sua mãe foi até ao colégio dizer-lhe que tinha de ir de viagem com um senhor chamado Phileas Fogg. Os corredores frios ficaram ainda mais frios do que já eram. O ar cheirava a desgosto e a náusea. E começou a cheirar a medo. O colégio. As freiras. As outras meninas. E também as criadas. A criada portuguesa. A criada inglesa. A criada angolana. A nova criada francesa. E as horas de recreio. E os baloiços. Até os recantos do recinto desportivo. Tudo a cheirar a medo. As pombas arrulhavam. Alice passou a fingir que comia. E começou a deitar a comida para debaixo da mesa. A que levava à boca enrolava-se-lhe entre a língua e o palato. Era como se fosse uma hóstia. Longe da quentura da mãe, começou a desmembrar as bonecas, a inventar bruxas e amigas de fantasia, que lhe diziam coisas estranhas e badalhocas. Não conseguia dormir. Apenas fechava os olhos para que a deixassem sossegada. Ficou vulnerável e cruel. Passou a estar só, mesmo quando estava acompanhada. Alguém lhe trouxe cogumelos para provar. A partir daí começou a crescer e a mingar, a enfiar-se dentro do seu buraco, a correr atrás do Coelho Branco. A dar pontapés no traseiro de Tweedledee e Tweedledum. Mas sempre que passa no colégio cor-de-rosa violento sobe-lhe sempre uma bola de pão ázimo à garganta. Nem uma lágrima lhe cai dos olhos.

23
Dez24

711 - Pérolas e Diamantes: Soluços de Natal

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 2 (13).jpg 

Há pessoas distintas, outras distintivas. E ainda outras que são nem sim nem não. São mais sopas de burro cansado. Umas atiram moedas ao ar. Outras aparam os cravos, de Abril. E as restantes veem e comentam. Umas sonham, outras fazem que sonham. E as restantes fazem de conta. Quando não há nada para fazer, ou nada a fazer, o melhor é fazer de conta. Umas fazem de conta que sim. Outras fazem de conta que não. E as restantes fazem de conta que talvez. A praça das celebrações está sempre fragmentada. E o pelourinho da minha terra, impassível, continua a olhar o céu com nuvens. Eu sonho, nisso sou como os outros. Pudera! Os sonhos dão-me coragem. São pequeninos. Pudera! Mas dão-me coragem. Uma coragem pequenina, mas sincera. Corajosa, mesmo na sua pequenez. Também os pesadelos são pequeninos, mas, talvez por isso mesmo, não me fazem sofrer. Tanto. O mundo, este nosso mundo, também é pequenino. Podemos desdenhar dele, troçar dele, mas todos temos orgulho. Nele. A sua pequenez é honrada, sincera. Pura. E verdadeira. Por isso fazemos tudo por ela. Para manter a nossa pequenez pequena é necessário um grande esforço. Lembro-me. Para pensarem que era orgulhoso, aprendi a ficar de pé e a andar, enquanto os outros ficavam sentados, de joelhos ou parados, a olharem a luz das velas ou da candeia. Eu à procura do meu tosão de ouro e ele a mudar de cor como se fosse uma coroa de flores no início da primavera. Lembro-me quando a minha mãe ornamentava a campa do meu avô com margaridas, crisântemos, lágrimas da Virgem Maria, dálias e outras flores de pétalas coloridas. Depois abraçava-se a mim. E chorava. E eu também chorava. Muitas vezes saímos do cemitério sobrevoados por abelhas. Provavelmente pensavam, por causa do odor que exalávamos, que éramos uma espécie rara de flores ambulantes. Quando chegava a casa, a minha mãe dizia sempre: “Senta-te, filhinho”, e depois sorria para mim. Depois dava-me um bombom de cereja e chocolate. Muitas vezes agarrava na minha mão e dizia-me que estava na hora de irmos apanhar amoras, pois as abelhas eram agora nossas amigas. À tardinha ia com a avó à casa da Dona Marquinhos da Ajuda, que morava no Bairro do Castelo, vê-la lançar as cartas como boa quiromante que era. A avó olhava para ela e sorria com beatitude. E eu, como criança pequena que também era, sentia-me imerso em felicidade. Aprendi então que um poeta, pode até vestir-se e despir-se como toda a outra gente, mas o que o distingue dos outros é a procura do homem novo. Os mais afoitos costumam planar por cima do nosso mundo. Gostava de pensar que os poetas eram anjos brancos que sobrevoavam a nossa aldeia, agitando as asas a recitar versos inteligentes. Enquanto lá fora cantavam, aos soluços, os perus que comeríamos no Natal.  Nós a trincarmos o peru e a olhar para o presépio, para o Menino Jesus, para o São José, para a vaquinha e o burrinho. E também para os três Reis Magos que nunca mais acabavam de chegar para oferecerem as suas prendas ao bebé com a perninha no ar e um dedo a indicar sabe-se lá bem o quê. Cada um é para o que nasce e o Menino Jesus nasceu para estar no presépio em palhinhas deitado a sorrir para quem lhe sorri. Nessas épocas era frequente apanhar amigdalites que tratava com antibióticos que me punham a boca a engrossar e os lábios a imitar os dos bonecos pretos que a minha avó comprava na Feira dos Santos, em Chaves, para darem sorte. E os perus continuavam lá fora a cantar, aos soluços, sem pensar no destino. O Natal de uns seres vivos é a desgraça de outros. Depois a febre subia e o vento amainava. Outras a febre descia e o vento aumentava. As grandes nuvens cinzentas do céu pareciam indiferentes. E o pelourinho também. A febre tornava a subir e eu olhava para as mãos aflitas da minha mãe. A meter e a tirar o termómetro nas minhas axilas. E eu ali continuava a ouvir os perus, no quintal, a cantar, aos soluços, e tornava a pensar na sorte que os esperava no Natal, enquanto a minha irmã saltava ao pé coxinho nos degraus da escada. As árvores continuavam a agitar-se. O pai bebia uma ginjinha e fumava um cigarro. A mãe trazia-me leite-creme e dava-mo com a colher pequena, não fosse eu engasgar-me.  Quando me lembro disto costumo ainda ficar com os olhos repletos de infância. A verdade é que nunca consegui comer peru assado no Natal. Dentro da minha cabeça ainda oiço os ecos dos soluços cantados dessas aves que os cristãos costumam sacrificar. No Natal. E noutros dias festivos.

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