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Lá estão as insónias em guerra. As lengalengas a adormecerem-nos. O sono a tomar conta do cansaço. A finíssima película da ilusão a enrolar os olhares, antes de adormecerem. O silêncio opaco. O abismo sem fundo. A noite. Os instantes dentro da ampulheta do tempo. E a eternidade sem conseguir respirar. Escuta-se o eco da solidão a reverberar pelas paredes. E a eternidade a tossir. E os bons princípios a atrair os quarenta ladrões. Ali-Babá remira-se ao espelho. Alguém verifica, cautelosamente, a sua integridade. Ele, o chefe dos salteadores, verifica os botões de punho da sua camisa. Os ladrões escondem os dedos. O melhor é não dormir. O cheiro do ouro atrai os gatunos. Uns deitam-se em camas de urtigas e deixam-se adormecer agarrados ao pecado. Outros sibilam estertores e tentam escavar, ainda mais fundo, dentro dos abismos. Muitos esperam longos instantes até que a eternidade comece a respirar de novo. O Birtelo balbucia preces de esconjuro. Enche-se de coragem e faz declarações de amor a São Sebastião. Sonha que dança com o seu Santo na escuridão, enquanto come farrapos de algodão-doce, alumiado por velas da altura do Senhor da Piedade. Move-se, avança, mudo e possuído pelo desejo. Caí desamparado em cima do seu pavor. Não está morto, amado sejas Jesus! Ele bem podia ser um dos teus apóstolos. Ama-os tanto como tu. Ou ainda mais. Sim, está envergonhado. E despeitado. Tem as mãos geladas. E o sexo murcho. E os olhos abertos a ver passar as horas. Chora a misericórdia da virgindade das pessoas que a perderam por se agarrarem muito ao terço e se deixarem penetrar por detrás enquanto se redimiam dos pecados dos outros. Três ave-marias, três pais-nossos e um ato de contrição. Bendito seja o Senhor e os seus pecados veniais. As rezas são fórmulas mágicas da desculpa. Tudo se funde no silêncio esférico dos objetos secretos do desejo. Cada um embala a sua dor e depois mergulha-a na água-benta do esquecimento. Ele tanto finge que sonha como é o objeto do desejo que é sonhado. São Sebastião ainda é mais lindo do que a Maria Madalena. Que também é linda. Chega a madrugada à aldeia. As casas continuam agachadas no lusco-fusco. A mãe parece uma sombra. A avó abençoa a mesa e humedece a ponta do nariz do seu neto. O tio João sopra ao lume e engole o silêncio. A manteiga derrete-se no miolo aquecido da bola. O padrinho diz para o afilhado: “O teu mal é o mimo que te dão! Se não fosse a tua mãe já te tinha metido a lavrar atrás dos bois.” Lá em baixo os bois mugem. Os recos grunhem. A avó anda de um lado para o outro, com os seus passos curtos. O sacristão foi tocar o sino para a missa de sétimo dia em memória do avô. “Esse caralho que não presta para nada e continua vivo.” “João, isso não se diz.” Tudo volta, de repente, a exprimir desolação. Mas a chuva amainou. Os galos e os cães calaram-se. De repente. A sacristia, onde o neto permanece, cheira a incenso, a cera e a bafio. A luz divina é gelada. As mulheres murmuram preces. Os homens dão algumas rosnadelas de impaciência. As ovelhas podem ser fiéis mas ainda devem alguma coisa à educação. Todas as mulheres se sentem Madalenas meigas e chorosas, prontas a aquecerem, com os seus túmidos peitos, os pés lívidos do Senhor. No meio de tanto frio, apenas as lágrimas do Birtelo encerram dentro si o fogo do pecado e da paixão. São Sebastião ou Jesus Cristo, o amor e o pecado, são os mesmos. Ele é o crucificado. E o avô já não é deste mundo.
Marcelo Caetano achava que em Portugal existia um “velho pendor nacional para a maledicência, para o descontentamento, para o criticismo exagerado e estéril que tudo compraz em denegrir e demolir”. Mas, garantia, coitado dele, que a insatisfação crónica apenas existia em “certos meios intelectuais”. Também nesse tempo as rendas das casas eram elevadas e a inflação fazia o seu desbaste nos baixos ordenados, que eram quase todos. Metade do país era constituído por invejosos e a outra metade por despeitados. Todos pobres, por sinal. Até os nossos ricos eram pobres, comparados com os ricos lá de fora. Metade do país gostava de música ligeira e a outra metade da música ligeirinha. Metade dos portugueses não gostava daquilo que a outra metade gostava e a outra metade respondia-lhe na mesma moeda. Até que se deu o suave milagre da “primavera marcelista” que pôs os portugueses a adquirirem discos sem possuírem gira-discos. Compravam pela capa sem saberem o que estava lá dentro. Foi dessa forma que o Marco Paulo se fez famoso. O cantor português tornou-se célebre com “Love Story” (1971), o tema do filme de Arthur Hiller, um sucesso internacional. Tito Lívio, um crítico musical da altura explicou desta forma o dislate: “Vive-se do êxito alheio, imitando-se os seus parâmetros. O produto de consumo diverte, não revela nada de novo, mas repete-nos o que já sabíamos, o que esperávamos ansiosamente ouvir e repetir e que nos diverte.” Entretanto, o grupo de bailados Verde-Gaio, criado por António Ferro no contexto da “política do espírito”, continuava na sua faina de interpretar os fandangos e os corridinhos, tanto em Portugal como lá fora, teimando em desenvolver uma política cultural do regime que tudo fez para institucionalizar a música folclórica portuguesa. Mas o lápis da censura da Direção dos Serviços de Censura nem o folclore poupava, riscando a vermelho as letras mais atrevidas, onde se encontravam os trocadilhos, as alusões sexuais e mesmo os erros gramaticais. Ou seja, também o folclore, ao contrário do que muita gente pensa, foi vítima do regime fascista. É caso para dizer que o famoso Quim Barreiros, com as suas letras, era homem para passar muita fominha barriguda e até ser forçado a desfrutar de uns meses de férias no Forte de Peniche. Paco Bandeira cantava versos deste calibre poético, revolucionário, militar e rural: “Fiz poemas fui soldado / E até cresci / Tenho saudades do gado / Do que perdi.” E, para não se ficar atrás, o cantor Luís Romão participava no I Festival da Canção da Guarda com o seu sucesso “Cavalgando Meu País”. Convenhamos que é muito cavalgar. Ary dos Santos, o Allen Ginsberg à portuguesa, escrevia então os versos do “Cavalo à Solta”, canção composta e cantada por Fernando Tordo, que concorreu ao Festival RTP da Canção. Mas não ganhou, ficando atrás da “Menina” Tonicha, com letra de Ary dos Santos e música de Nuno Nazareth Fernandes. Em Março de 1971, o genial Carlos Paredes, gravava o “Movimento Perpétuo” da música popular portuguesa, depois de correr e saltar pelos consultórios a tentar convencer médicos a adquirir os remédios da farmacêutica Jaba. O seu fado, ou canção, de Coimbra, dizia ele, não tinha nada de extraordinário. Era mera canção ligeira. Carlos Paredes, em várias entrevistas, defendeu a doutrina do compositor e musicólogo Fernando Lopes-Graça, que dividia a canção portuguesa em três segmentos estanques: canção ligeira, canção tradicional e canção erudita. A verdade é que “Movimento Perpétuo” subverte o conceito de FL-G, pois é, ao mesmo tempo, música ligeira, tradicional e erudita, pois sendo fado de Coimbra, evoca simultaneamente o folclore beirão e até a música de câmara renascentista. Em novembro de 1971 são apresentados na FIL, os discos “Cantigas de Maio”, de Zeca Afonso e “Gente de Aqui e de Agora”, de Adriano Correia de Oliveira, na Convenção Anual e de Catálogo de Natal, da editora Orfeu, entre slides, jogos de luzes e mariscada, para revendedores e imprensa. Na ousada estratégia comercial foram colocados à venda discos às prestações e foram oferecidos gira-discos na compra de dez LP. Bons tempos. Dizem uns. Outros dizem precisamente o contrário. Vá-se lá saber porquê.
E a mãe a estragar os seus olhinhos com todas aquelas lágrimas. Nestas coisas não se consegue evitar. E a mãe, com os seus olhinhos húmidos, a agradecer a Deus aquilo que ela queria que fizesse. Mas ele não fez. Ela sentada, com as mãos unidas sobre o regaço. E os olhos semicerrados. E os lábios apertados, como se rezasse. A ignorar a vozinha da avó. E a tentar não duvidar da confiança em Deus. De seguida, a noite tornou-se densa. E todos os caminhos sonhados, apenas desciam até ao rio. E depois desapareciam. E a mãe caía. E a avó caía. E eu também caía. E a mãe apertava a minha mão. E a mãe apertava a mão da avó. E a avó fazia que apertava a mão de Deus. E Deus não apertava a mão de ninguém. Depois a mãe começou a cantar baixinho. E a avó a rezar baixinho. E Deus calado como se fosse surdo e mudo. A mãe sempre teve uma voz bonita. A voz que uma mãe deve ter. A voz de mãe. Há pessoas que são fáceis de gostar e difíceis de compreender. Outras parecem rosas murchas envolvidas, em celofane. Outras, ainda, parecem limões cortados ao meio. A algumas mulheres até os olhos lhes brilham através do véu, quando vão à missa ao domingo. E passam todo o tempo em silêncio, como se fossem mudas. E enchem os pulmões com o ar viciado da sacristia. Depois a velha noção de pecado principia a engolir as cores a toda a volta. Várias mulheres, sentadas à porta, começam a contar histórias umas às outras e a olharem para o céu, porque tarda em chover. E a mãe do outro lado do sonho a dizer dói, dói, água, água. E as sombras a entrarem pelas janelas. E as mulheres andrajosas a encherem os seus quartos com anjinhos de plástico, postais da última ceia, Nossas Senhoras de Fátima rodeadas de pastorinhos e animais de peluche. E as mulheres idosas a rezarem o terço em maio e a olharem para o altar. E Jesus Cristo a suar e a sangrar. E a mãe a mortificar-se por causa do avô. A mãe chorava porque se convenceu que eu falava a dormir, que pranteava em sonhos e que me levantava e andava pela casa como um sonâmbulo. Que falava com presenças invisíveis e que me ria muito sem razão definida. Depois surgia sempre o vazio divino. Seguido da excitação, das cintilações e das luzes artificiais. E meninas disfarçadas de fadas com asas de borboletas. E os medos a ressurgirem do fundo da memória. Então eu acaricio o rosto da mãe com os olhos. O vento atravessa o vale e revolve as folhas das copas das árvores e também as caídas no chão. A avó contempla, com alívio, as nuvens grossas que carregam o céu. A abençoada água aí vem. Uma gota grossa cai na palma da mão aberta. A natureza expande-se. Sente-se o seu júbilo interior. Este é o meu lugar cutâneo. Dentro dele estão as ausências. Perdidas. A afastarem-se. Eu tateio as distâncias. Um novo tempo vital começa a surgir. Dois rios, que nasceram há pouco tempo, começam a correr por esses montes fora. Um chama-se Rute. Outro chama-se Samuel. Há lá coisa mais bonita! Eles cheios de luz. Vivíssimos e vulneráveis. A sentirem o tempo sem se aperceberem. A temer o espaço. Mas a aventurarem-se. A sorrirem. A correrem. São símbolos uníssonos de amor. No entanto, a espessura dos solstícios e dos equinócios continua a desenvolver-se no seu eterno devir. Depois da chuva, abriu-se o sol. O tempo ficou límpido. As fragrâncias expandem-se. A superfície das coisas começa a cintilar. Nas manhãs mais frágeis vou ter de me dedicar à floricultura.
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