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Ali vem ele, o anjo da guarda, exibindo a sua carinha angélica de criança rosada, imberbe, de lábios delicados, evidenciando a sua beleza e a sua inocência pueril, que a todos sossega. Já atravessou mares, encantou serpentes, foi palhaço, trapezista, empregado de bar, lenhador, guardador de rebanhos, fernando pessoa, ferroviário, ator de teatro de vanguarda, adília lopes, marinheiro, caetano veloso, lenhador, herberto helder, travesti, mário cesariny de vasconcelos, lutador de jiu-jitsu. Tem coração duplo. Dizem. Num dos seus delírios também foi pugilista. E funambulista. Escreveu poesia repleta de murros, dados e levados, sobretudo no rosto, que o faziam parecer jesus cristo depois de expulsar os vendilhões do templo. Pedalando num triciclo, distribui uma revista literária criada por si. Fez vários espetáculos em obscuros cabarés e salas prestigiadas onde, depois de vários números circenses e poemas declamados ao contrário, sacou de uma pistola, dando a entender que se ia suicidar, mas acabando por disparar na direção de um alvo vestido com uma armadura medieval. Disse enormidades sobre a arte. Todas falsas. Todas verdadeiras. Apesar dessas disputas artísticas, declarou não ter paciência para as guerras, afirmando-se ferozmente pacifista. Foi o primeiro modelo de “anartista”, um ser a quem aborrece, acima de tudo, o dinheiro, a glória e o público. Vestiu-se de cowboy, montou um alazão preto e disparou balas verdadeiras sobre a instalação elétrica das salas onde atuava. Vestiu-se de índio, montou um alazão branco, e disparou flechas na direção de um alvo com cara de francisco pizarro gonzález e vestido com armadura medieval da cintura para cima. Este anjo era capaz de matar um homem pela simples pressão de dois dedos e se o chateassem a valer, com um murro deitava um prédio abaixo. Harpo Marx ainda conseguiu amparar um deles para deixar passar uma pata a conduzir meia dúzia de patinhos feios. Harpo era também um bom anjo da guarda. Um dia, perante uma sala cheia de pessoas ávidas de surpresas artísticas, resolveu dirigir-se para a tribuna, olhar em silêncio o público e começar a despir-se. A princípio, quando ainda tirava os sapatos, as meias, despia o casaco e as calças, a plateia parecia aceitar a marcha dos acontecimentos com um suspiro indulgente e mesmo com um sorriso frio de cinismo autoimposto. Mas quando o anjo da guarda ficou em trajes menores e acabou por despir-se totalmente, revelando a mais perfeita das indiferenças, acompanhada pela sua portentosa e angélica nudez, um murmúrio de reprovação inundou a sala. Foi então quando o anjo soltou um grito tão selvagem como se viesse do início da criação. Talvez igual ao que adão lançou quando deus lhe tirou uma costela e dela moldou eva a ferro e fogo. Quando um punhado de homens o rodeou, foi-se a eles a murro. Mas acabou vencido. O restante público abandonou a sala numa debandada tumultuosa. No dia seguinte, resolveu aparecer num baile enfiado num manto, exibindo a sua corpulência e magnetizando, pelo seu histrionismo, os artistas plásticos que o seguiam. Para fugir às guerras calcorreou estradas poeirentas, vagueou por campos verdes, escondeu-se e dormiu em granjas. Morreu num ato falhado de restituir à palavra da poesia o puro furor da vida pulsional e instintiva. Afinal, este anjo da guarda não tinha o seu anjo da guarda.
Nas minhas voltas a pé, tanto na margem direita como na margem esquerda do Tâmega, reparo, com um sorriso de satisfação solidário, que, enquanto eu tento desfazer-me do excesso de calorias ingeridas às refeições, há senhoras corajosas espalhadas pela relva que, junto à alameda das árvores mais altas, das quais não me lembra agora o nome, a mando de um cavalheiro de porte atlético saudável, realizam exercícios em cima de tapetes ergonómicos que as colocam em posições atrevidas e de difícil postura física, talvez com a firme determinação de se nutrirem de ioga e de ectoplasmas. Esticam e encolhem o corpo de forma lenta, mas determinada. E, pelo que vejo, são mulheres que já não vão para novas. Algumas revelam mesmo um ou dois traços de celulite, desde a cinturinha até às coxas, e, quiçá, algum papinho. Às mulheres, salvo seja, tudo lhes fica bem. Gabo-lhes a coragem, pois eu, se tentasse, mesmo que só ao de leve, fazer tais acrobacias em câmara lenta, tinha de alguém chamar o INEM para me tirar dali e levar-me de urgência para o Hospital. Reconheço que Buda é um inspirador eclético. Entretanto eu passo perto delas, como se não fosse nada comigo, enquanto elas se contorcem, como se estivessem no circo e o sol se inclina mais um cibo na linha do horizonte. E ali vou eu a escutar mais um pouco da música dos Elephant Gym (especificamente “Feather” do álbum WORLD), ou Khruangbin (nomeadamente “Maria También” do álbum CON TODO EL MUNDO), nos auriculares ligados ao iPhone através de Bluetooth, intervalada com uma humidade impregnada do aroma das flores que por ali desabrocham um pouco ao deus-dará. Tudo na santa paz do Senhor. Então penso: “Tu não és católico, pois não? Mas eras capaz de te ajoelhares?” “Acho que sim.” “E budista?” “Deus me livre, era lá capaz de rezar daquela maneira.” Se ainda não se aperceberam, este é um excerto do diálogo que eu tive com a minha própria consciência. Que é um pouco mais malandra do que eu… quero pensar dela. Peço desculpa por não o poder transcrever, na íntegra, por motivos óbvios de correção política e também por decoro, educação, etc. Mas. Mas claro que me compreendem. Os leitores, tal como os amigos, são para as ocasiões. Em que necessitamos deles. Sobretudo os bons. Leitores. Sobretudo os bons. Amigos. Claro que estou a partir do princípio que os bons leitores também são bons amigos. E que os bons amigos também são bons leitores. E olhem que não é só por me dar jeito nesta situação específica. É porque sim. Senhores leitores. E senhores amigos. Como ia dizendo, depois chego a casa meditativo e um pouco cansado de olhar para as senhoras do ioga, para as árvores, para as pessoas que passeiam os cães, para as pessoas que passeiam só por passear, para o rio, para as poldras, para as pontes, para o céu, para as esplanadas, para os carrinhos conduzidos pelas crianças, pelas crianças conduzidas pelos pais, pelos idosos conduzidos pelos filhos e noras e netos, para os ciclistas, para os jogadores de padel e sobe por mim uma vontade quase indomável, quase existencialista, de ir até ao escritório esfolar um livro do Sartre. Ou do Heidegger. Ou do Delleuze. Mas a verdade é que com tanto que fazer há pouco tempo para ler. No sossego da casa, olho para os livros arrumados, para a mesa deserta, para o computador a piscar e sou tomado, interiormente, por um vazio medonho, provavelmente filosófico, e uma tal melancolia, provavelmente existencial, que eu até sei lá! Sei lá! Sento-me então frente ao teclado do computador e tento escrever. Mas não me sai nada. Folheio então para aí uns vinte e cinco livros e não consigo ler nenhum, nem sequer o “Tintim no País dos Sovietes”. Vou até ao quarto, que está forrado de livros, e ponho-me a agrupá-los, agora, por ordem alfabética dos autores. Penso que a literatura é um mundo em si. Eu amo os livros, isso eu sei. Daí pensar naquela coisa poética de que o amador se confunde facilmente com a coisa amada. Penso nas estoicas mulheres do ioga, com objetividade filosófica, em tudo isentas de erotismo. E confirmo então o pensamento profundo de que aquelas senhoras são apenas dignas da pena de Petrarca ou de Dante. Lá mais para a noite, depois de esconjurar o existencialismo de Sarte, deito-me como gato a bofe, por junto ou separado, a 25 páginas de Proust (Sodoma e Gomorra), 32 de Virgínia Woolf (Orlando) e 27 e ½ de James Joyce (Ulisses). E por aqui me fico, por hoje, para não vos ralar ainda mais.
Ela telefonou hoje de manhã a alguém. Disse-lhe que queria desaparecer. Para sempre. Isso é ao mesmo tempo fácil e difícil. Este pode ser um prólogo do desaparecimento. Deve deixar o guarda-fatos vazio. E as cómodas. E os espelhos. Pode estar a exagerar. Ninguém sabe ao certo. Ela sempre disse que se sentia a caminhar do certo para o incerto. Vamos ver quem a vence desta vez. A infância? A amizade? A noite? Deitou fora os presentes da sua fada-madrinha. E os pêlos púbicos do seu anjo-da-guarda. Ele sempre lhe lançava um dos seus olhares, quando a apanhava distraída. Por vezes, gelava de medo. Curiosamente, não tinha medo do papão das histórias infantis. Mas tinha medo dos olhares penetrantes do seu anjo-da-guarda. A loucura costumava aproximar-se da mãe e do seu anjo-da-guarda, quando ambos se fechavam no quarto. Ela espreitava-os pelo buraco da fechadura, mas só via névoa, ouvia gemidos, sussurros. E, de vez em quando, gritos que pareciam outra coisa. Nunca conseguiu perceber donde lhe vinha a animosidade e o ódio. Ela sabia esperar. A mãe tinha-lhe proibido terminantemente de se aproximar dele. De lhe falar. De o espiar. Devia agir como se ele não existisse. Apenas podia olhar para ele de longe. Doutra forma, ele lançar-lhe-ia para os olhos uma coisa aguçada e ardente. Muitas vezes esperava que ele acendesse a luz e subisse as escadas, mas nessas ocasiões ele nunca vinha. A mãe costumava vir dar-lhe a mão e levá-la para dentro de casa. Esse gesto era tudo para ela. Ela sentia-se sempre estranha, mesmo quando brincava no pátio com as outras meninas. Fazia sempre de conta que brincavam em conjunto. Ela e a sua boneca que tinha cara e olhos de plástico azul. Ela tinha os olhos escuros. A boneca da filha da vizinha tinha o corpo feito de um trapo amarelo enchido com serradura. As suas bonecas sofriam dos mesmos medos. Por vezes, ela sonhava com o seu anjo-da-guarda, com a sua boca aberta e acordava a chorar. Ela sabia que tinha medo do seu anjo-da-guarda, mas não sabia como evitá-lo. A sua infância era como um quarto escuro, possuindo apenas uma janela protegida de fora por uma grade de ferro. A porta estava fechada à chave para que o seu anjo-da-guarda não entrasse quando estava a dormir ou a brincar com a sua boneca de plástico. Por vezes, ela ouvia a mãe e o seu anjo-da-guarda a arrastarem os pés e, pelo buraco da fechadura, pensava que via os dois a roçar-se pela formas indistintas das coisas. Nessas alturas queria fugir para sempre. Fugir daquela casa. Fugir mesmo ao seu destino. Depois deitava-se e tentava ver se conseguia deixar de pensar nisso. Via pequenos animais, quase invisíveis, que saíam dos cantos do quarto em direção à cabeceira da sua cama. Eram esses os animais que produziam o medo que a acompanhava durante o dia. Tinha sempre a cabeça cheia de palavras proibidas. Não brincava com meninos. Nem na escola. O seu anjo-da-guarda dizia-lhe que eram perigosos. Eles e as suas brincadeiras. Ela aprendeu a ler sozinha. O que provocou nas colegas da escola alguma inveja. E alguma perplexidade na professora. E surpresa na mãe. Ontem, o seu anjo-da-guarda deu-lhe dinheiro para comprar outra boneca que pode ter olhos azuis. Ou não. Ela comprou um caderno e pôs-se a escrever um livro com o título A Fada Azul que Matou o Anjo-da-Guarda.
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