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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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27
Fev25

Poema Infinito (750): Pensamentos obsessivos

João Madureira

IMG_4383 - cópia (1).jpeg 

Os pensamentos obsessivos são perigosos porque nos podemos atolar neles. Ainda é possível sonhar com o futuro, apesar dos encantos tóxicos que nos rodeiam. O passado, por vezes, era doce. Quando logo à saída do forno, a mãe cortava generosamente o pão com as mãos, o untava com azeite e o cobria com açúcar. Há uma certa mágoa por detrás da memória. São visíveis algumas palavras, como se ainda estivessem escritas em papel de carta. A vida era semifaminta. Lutava-se diariamente contra a pobreza, tentando evitar as cidades mortas dos contos de fadas, onde as pessoas pareciam irreais, como se fossem sombras chinesas. Os pormenores estavam cheios de impaciência. A euforia era incerta. Desnudavam-se os campos para cultivar batatas, centeio, milho, repolhos, pepinos, tomates, cebolas, pimentos. A inverosimilhança entrava pelas janelas adentro como se fosse o sol. Havia frio ou calor e migalhas de escuridão que faziam as noites pesadas para a imaginação. Tudo passava impercetivelmente. As fanfarras tocavam hinos de angústia azul. Havia guerra lá nas terras do fim do mundo. O sol nunca atingia o zénite. A primavera não tinha flores. A rádio tocava música nem triste nem alegre. Era tudo tão assim-assim que dava nervos. Tudo feito de obediência. Mas. Mas dentro dos livros havia palácios e criaturas espantosas e papagaios e macacos e anões e princesas e criaturas celestes meio desenvolvidas, mas de ar rosado. Também havia arco-íris. Só que durante a noite vinham as bruxas e levantavam os telhados dos palácios, os tronos eram incendiados e a água do mar destruía tudo. Mas logo pela manhã, quando abria o livro e nele entrava a luz do sol e atrás dele o meu olhar, tudo ficava restaurado, as molduras, os espelhos, as cores das salas, os lustres e as cadeiras. Instalava-se uma luminescência rosada sobre os rostos das pessoas. Até os semideuses se punham a bailar com as ninfas. Tudo era e não era. As criaturas enigmáticas e estranhas confraternizavam com os representantes do nosso mundo familiar. E isso era insuportável. Parece que vivíamos dentro de uma caixa que possuía um dos lados em vidro. Era dali que víamos o mundo. Ensinaram-nos a ter fé nas caixas que eram como gavetas onde nos podíamos fechar. Tínhamos fé que as abrissem para vermos o que nos mostravam, casas de bonecas, bolinhas de sabão, guarda-joias, vésperas de Natal, caixinhas de música, bailarinas e soldadinhos de chumbo, comboios de brincar, pequenos amores, pequenos templos, memórias, pequenos desenhos de pequenas coisas, pequenos segredos, pequenas rimas, pequenos amores. E ficávamos contentes pela possibilidade de nos mostrarmos. Pequeninos. A nossa Arca de Noé não sobreviveu à enxurrada com que se costumava regar o renovo lá da aldeia. As regras eram o nosso jogo. Enquanto meninos, éramos obrigados a memorizar o caminho de volta a casa. Os segredos transformavam-se em rios subterrâneos. Tal como eles, nós éramos inúteis à superfície. Cheios de modéstia digna e enérgica. Éramos, para os outros, um sonho de carnaval em miniatura. A gaveta enchia-se de um nevoeiro goticulado por ternura e tristeza. E nós ali dentro da gaveta, escondidos nos quartos secretos tapados com tábuas, ou nas caves. Havia vários métodos de nos escondermos da desgraça.

24
Fev25

719 - Pérolas e Diamantes: Um homem não chora

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 2 (2).jpg 

Nas minhas peregrinações interiores, nunca deixo de admirar os pormenores do velho trajeto que me leva sempre aos lugares da minha infância. Esses caminhos estão colocados no ângulo tranquilo da minha memória. Talvez um pouco afastados uns dos outros, mas suficientemente perto entre si para poderem fazer sentido. Por vezes distraio-me e ando de cá para lá até escutar as vozes deles. Daqueles que me continuam a fazer muita falta: o avô, a avó, o pai, a mãe. E também o sobressalto das horas a soarem no campanário da igreja e o eco dos seus passos e a casa antiga e as ilusões e o amor da minha mãe ainda viva. As árvores estão podadas, os montes desbastados, o jardim regado e cheio de botões de flor. As portas permanecem abertas. E o tempo, ali está, sentado defronte da minha janelinha. O Birtelo costumava recitar fantasias que ainda povoam a minha memória. E os gnomos a descerem pelos raios de luar. Eles. Os gnomos. E eu. Eu. E. E os olhos do rebanho das ovelhas que pastavam nos prados. Esse foi o período da tristeza e da alegria a coexistirem ao mesmo tempo. Muitas vezes eram tão idênticas que nem eu as conseguia distinguir. Em certas alturas é complicado encontrar o caminho de regresso. Penso que o passado não pode ser um espectro vingador. Há situações em que até a nossa companhia consegue ser pesada. E as histórias da carochinha não chegam a ser compensadoras. O rosto do passado pode ser expressivo. E ali está a face da mãe cheia de firmeza e bom senso. E o rosto do pai, contemplativo e triste, a observar as chamas da fogueira. E eu a tentar olhar para o futuro que parece estar a ser talhado para mim. Os livros podem ser enganadores. O futuro, quando eu tentava olhar para ele, costumava dissipar-se um pouco lá mais ao longe. Olhei várias vezes para trás, para a linha do horizonte, que brilhava ténue e à distância. Eu tentava sempre manifestar-lhe o meu espanto através de frases breves e concisas. Mas nem o eco conseguia escutar. O passado parecia ser enorme. Mas o futuro foi anão. Vá lá, não acreditem em mim. Sou um pantomineiro. Ah! Ah! Ah! O futuro não é desagradável. Mas tem alguma falta de princípios. Ah! Ah! Ah!  O mundo, caros amigos, continua dominado pelos embusteiros. O futuro costuma pagar como fala, pouco e nem sempre a horas. Claro que há futuros deveras risonhos. Provavelmente o meu malbaratou muitas das suas qualidades antes de me conhecer. Eu tentei embelezar-me para ele, como me tinham ensinado. Mas de pouco serviu. Por vezes somos levados a rir porque vemos os outros rir. Ah! Ah! Ah! A crer na grande maioria das pessoas, as suas infâncias foram puras e cheias de claridade. Todos acreditamos naquilo em que queremos acreditar. Mas as suas auréolas de anjos são mais fruto da imaginação do que fundadas na realidade. A maioria das vezes, a nossa infância fica para ali especada, no meio do caminho, misteriosa e respeitável, sem querer acreditar naquilo que dizemos acerca dela. As memórias da infância, e também da adolescência, devem ter uma boa porta de acesso, mas também uma escada de serviço para ser usada em caso de incêndio ou terramoto. “Que extraordinária sagacidade”, dirão muitos dos leitores, mas isso é porque ainda não conhecem muitos dos recursos do meu intelecto. Eu, bem vistas as coisas, apenas pretendo contentar-me com o vosso afeto, que me dá satisfação e me enche de orgulho e alegria. Mas também espero que tolerem os meus caprichos e manias. Os bons leitores, tal como os bons amigos, (re)conhecem-se nas ocasiões. Pronto, já sinto atenuar-se o rumor de algumas memórias de infância, transformando-se num zumbido longínquo. Não há nada melhor do que as invocar. Umas dão para escrever histórias, crónicas e poemas. E outras para ir redigindo, à velocidade de cruzeiro, alguns romances. Certas alturas, vem cheio de luz, lá do seu buraco negro, o avô João Lorde, tira a sua boina, pega na navalha e em pedaços de madeira e põe-se a talhar uma junta de bois e um jugo. Depois olha para mim e sorri. Eu olho na sua direção com olhos piscos. Não choro. O João Augusto não chora. Era o que mais faltava. Um homem não chora. Não é avó? Um homem não chora. Um homem não…. Isso é fácil de dizer.

20
Fev25

Poema Infinito (749): Quase tudo, quase nada...

João Madureira

ORIGINAL (1).jpeg 

A sua tristeza é seca. Os encontros felizes são raros. Ontem choveu. E ele pintou a cor brumosa que se estendia sobre o céu de Paris. Por vezes, quando sentia uma solidão total, punha-se a pintar até adormecer. No dia seguinte foi ter com ela. Feliz. Ela sentiu o mesmo. Ela falava com admiração da poesia, do jazz, da pintura. E do amor. Ele disse uma frase em francês que leu num conto de Ivan Búnin: “L’amour fait danser les ânes”. Riram-se ambos.  Ela era bonita. A cidade era bonita. Ele nem tanto. Ela tinha um encanto especial. Era uma mistura incontrolada de sol quente e de frescura marítima. Tinha uns olhos azuis oceânicos, muitos vivos e ondulantes. Enfiada nos seus atavios femininos, produzia uma atmosfera lasciva difícil de contornar. O pintor sempre se reconheceu pelo seu amor incondicional à pintura. Até a conhecer. Ela arrebatou-o ao cavalete. Era incrivelmente querida. Ágil. Graciosa. Tinha uma cara angelical, caracóis loiros caindo-lhe ao longo das faces. Também era muito atrevida. Em todos os sentidos. Ele era sentimentalmente a preto e branco. Teve sempre uns olhos vagarosos. Olhos de pintor. Que observavam tudo ao pormenor. Tanto mostravam como escondiam emoções. Sem o saberem, estavam dentro de um filme. Ele janota, de cartola, casaco, luvas, botas de meio-verniz com botões, bengala elegante e autoritária. E bigode. Ela apareceu postada à janela de um prédio famoso porque, na primavera, as suas cornijas se enchiam de estorninhos chilreantes. Ela, como se estivesse a ser filmada, emitia sorrisos rápidos. Ele enviou-lhe violetas. Ela, cheia de gratidão, meteu o nariz no ramo, como é costume nas mulheres. E aceitou ir ao estúdio do pintor. Disse que era a primeira vez que pisava esse tipo de santuário. Ele levou-a pelo braço. Riam-se os dois. Ela de encantadora passou a admirável. Ele só sabia brincar a sério. Ela ficou silenciosa, subindo as escadas roçagando com a saia de seda interior. Olhou para trás. Para ele. Entrou no estúdio com ar de veneração. Espantou-se com o divã enorme. Ela disse: “Tudo isto é misterioso”. Espreitou para as telas com uma admiração silenciosa. Fartou-se de ver e suspirar. Beberam dois cálices de vinho do Porto. Ele perguntou se a podia beijar. Fellini, o realizador, disse-lhe que sim. Então ele sentou-se e pô-la no seu colo. Ela baloiçava ligeiramente os pezinhos pendentes, reclinando a cabeça e abrindo ligeiramente os lábios. Ele passou a mão pela meia escorregadia de seda, até ao fecho, até ao elástico. Desprendeu-o. Beijou-lhe a anca rosada e quente. Ela abriu mais um pouco os lábios. Ele mordiscou-lhos, de mansinho. Então ela foi-se embora e ele pintou um quadro monótono de um dia quente, com ar puro, a beleza azul do mar liso e também campos de milho amarelo. E, no meio dele, pintou-a de saias caídas, os pezinhos delicados, corpo rosado, ombros bronzeados, seios leitosos, soerguidos, mamilos carmesins, pernas esguias e vagina em forma de pássaro. Viveram apaixonados quase até ao fim do filme. Ambos ficaram instáveis, de um momento para o outro. Ela envenenou-se quando um dia o viu a pintar outra rapariga, em tudo parecida consigo. Mas mais nova. Ele, enlouquecido, pegou nos pincéis, na tela, nas tintas e foi pintar para o meio das searas. Quando acabou o quadro quase deu um tiro na cabeça.

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