Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

31
Mar25

724 - Pérolas e Diamantes: Figurantes e figurações

João Madureira

Apresentação3-2 (3).jpg 

Estive numa terra entre montanhas onde o ar era tão puro que se podia servir numa chávena. Muitas vezes me virei contra a brisa e consegui sorvê-la devagarinho como se fosse um peixe, sentindo nas guelras o oxigénio a misturar-se com o ozono. Vim de lá com os pulmões como novos. Passeei por aquelas terras sorrindo ao longo das áleas de estátuas e árvores, todas elas colocadas com mestria de arquiteto paisagista. Estátuas de reis espadaúdos e de princesas ramificadas. De Adões testiculares e de Evas vaginulares, com as parras nos sítios errados, mas com os genitais nos lugares adequados. Todas em mármore fresco ou em calcário, tão branco como o açúcar. Também havia por lá museus ornamentados com baixos-relevos do passado glorioso daqueles povos, de quando ainda andavam com machados, se vestiam de peles e copulavam as mulheres como se fossem cavalos. Eles. E elas, éguas rabonas. Confesso que por ali andei admiradíssimo com a inacreditável fidelidade dos artistas perante os modelos. Se aquilo se tornasse realidade ia ser o bom e o bonito. Alguém, a meu lado, fazia questão de falar explicitamente, e com orgulho, daquela realidade primitiva. Fomos também visitar lindas aldeias com casas pequeninas, com as flores debruçadas nos parapeitos das janelas e nos aros das varandas, onde os guias colocavam, com subida mestria e com as suas frases perfeitas, mães e futuras mães, todas sólidas camponesas, mulheres e raparigas loiras, que nem pareciam deste mundo, mas do Olimpo das deusas. Todas possuíam peitos ostensivamente bonitos e, quando por algum motivo, tinham de se deslocar de um lado para o outro, faziam-no sempre devagarinho, como se fossem estatuetas animadas. Pelo menos era isso o que os guias diziam. Um senhor, a meu lado, pequeno, por sinal, entusiasmado com as figurações, disse, para quem o quis ouvir, que não é necessário ser-se de estatura avantajada, o realmente importante é sentirmo-nos grandes. A verdade é que ao pé daquele jardim de estátuas, baixos e altos relevos e árvores seculares, todos nos sentimos como os anões da Branca de Neve no dia do seu casamento. Naquela cidadezinha da floresta revigorei-me também com boa comida e bons vinhos, feitos de castas especiais. As raparigas, como nos benévolos livros de outrora, bebiam apenas copos de leite de vaca. Aqueles povos, segundo estudei, estão habituados a vencer porque sabem que a sensação de vitória é determinante. Muitas das tardes, quando o sol brilhava, os criados, vindo de lá de longe, muitos até das nossas terras, levavam chávenas de leite ou chá às meninas, ou mesmo taças de gelado ou leite quente para as piscinas azuis onde nadavam belas mulheres de cabelos louros, completamente nuas. E eu, como se fosse um médico, podia olhar para todas elas e observar os seus corpos claros, a ondular, a afastarem os braços e as pernas, em movimentos rápidos, a esticarem o físico em belos movimentos de natação.  A observar os raios de sol a iluminar os azulejos azuis ou verdes do fundo das piscinas, onde as belas nadadoras, ao terminarem os seus exercícios de natação, encolhiam as pernas, punham-se em pé e ficavam ali paradas para que a água escorresse pelos seus corpos, pelos seus peitos (maminhas, talvez) e barrigas, a passarem as mãos pelo cabelo, ou pelo púbis, como se estivessem a rezar uma oração ao deus da criação. Depois comiam e bebiam devagar o que lhes apetecia. Muitas delas, depois da oração e da eucaristia, voltavam à piscina, como se tivessem esquecido alguma coisa na água, mergulhavam e continuavam a rezar, juntando as mãos, afastando a água e nadando de novo. Disseram-me que eram rituais de fertilidade. Elas, quando olhavam para nós, era como se não existíssemos. Eu sorria e não deixava transparecer nada, como muito bem me ensinaram os meus pais. Depois o tempo começou a arrefecer e os hóspedes do hotel onde eu estava começaram a ficar como os poetas antes de começarem a escrever poesia. Então vim-me embora. Na hora da despedida a banda tocou uma musicata solene. Tão solene e bonita que até chorei. Ali de pé, emocionado. Depois entrei no autocarro, com o olhar sombreado pelos ramos dos carvalhos.

27
Mar25

Poema Infinito (753): Pirilaus e pirilampos

João Madureira

21894404_Z8kkg - cópia 2 (3).jpeg 

Acordávamos estremunhados de manhã, quando já o João Lorde andava a esporear o potro. Afeiçoou-se à violência sobre os animais ainda em criança. O pai andava por África a civilizar pretos. Diziam os outros com palavras de falsa responsabilidade. Ele brincava de tal maneira que trazia sempre os joelhos a sangrar, como se fossem frutos em ferida. Dava trambolhões, de propósito. A mãe, chorosa, ia-lhe buscar álcool, mercurocromo e sulfamidas. E perguntava-lhe se doía. Ele ficava quieto. Mudo. E trincava os dentes. Às vezes, para se pôr à prova, olhava para as feridas, estendia um bocadinho as pernas para senti-las a doerem, depois encolhia-as com uma careta de gozo, de quem tinha um certo prazer em aguentar a dor, para se julgar forte e destemido. Sentado sobre o liteiro, o pequeno João rememorava a epopeia da cavalgada e do trambolhão. A sensação deliciosa da queda livre, aterrando de joelhos. Queda que quase lhe foi fatal. Em dias de trovoada, gostava de contrariar a mãe e ir pela orla do terreiro e, a seguir, quando se via a luz dos relâmpagos a faiscar, se escutava o som dos trovões e se sentia a ferocidade do vento, o pequeno João ia para debaixo das árvores, por saber que estar ali era perigoso. Também gostava de ir apanhar salamandras, nos dias de chuva. E de gritar. Como ganhava amigdalites com frequência, teve de ser operado. Durante muito tempo teve as amígdalas expostas na mesinha de cabeceira do seu quarto, mergulhadas em álcool dentro de um frasco de vidro transparente. A mãe dava-lhe beijos nas bochechas ou na testa, que ele limpava com as mãos. No Natal recusava-se a ir com os outros rapazes buscar musgo ao monte para atapetarem o presépio da Igreja. Mas ia vigiar os seus colegas de perto, montado no seu potro. Olhava para eles como se fossem os pretos que o seu pai andava a civilizar lá na longínqua África. O menino Jesus era para ele um bebé fraldiqueiro que se ria como uma menina. Só que tinha um pirilau, em vez de um pirilampo, entre as pernas, como as meninas. Isso costumava dizer ele. À mãe. Naquele tempo, a consciência, ou inconsciência, política e religiosa chovia apenas nas cidades grandes. O resto parecia uma corrida de burros em roda de uma nora para levar a água ao nabal. João(zinho) chorava sempre que a mãe lhe mostrava a fotografia onde ele estava vestido de anjinho com uma coroa na cabeça. A sua mãe dizia-lhe que ele apenas se dava com os pobres ou com os ciganos. O João(zinho) punha-se então a chorar. Porque era verdade. Montava no seu potro e esporeava-o ainda com mais intensidade. Até lhe fazer sangue na barriga. O João, aprendiz de lorde dos lameiros, da gaita de centeio e dos arados, era muito aluado. Namorava com a Carlota, gabava-se de ter e de fazer gaiolas, também para pássaros. Pendurava-se nas traves do teto. Bebia vinho doce às escondidas. E, também às escondidas, fazia maroteiras às raparigas e até se punha a imitar o canto das cotovias para ver se as conseguia trazer pelo beicinho. Não era namorado de uma rapariga só. Tinha frieiras no inverno e por isso pontapeava os gatos. Dizia muitas coisas como se não as dissesse. E dizia outras ao mesmo tempo que a sua mãe, quando discutiam. Ela achava-lhe sempre piada. Tudo em seu redor era muito duvidoso. Cresceu rápido. E ainda mais rápido o mandaram para a tropa. Lá para Lisboa. Depois enfiaram-no num barco e enviaram-no para Angola, para a terra onde o seu pai tinha ido civilizar pretos. Isso continuavam a afirmar os brancos. Medrosos. Ao João Lorde disseram-lhe para os matar. A tiro. À facada. Ou à bomba. Afinal, a civilização não estava bem assimilada. Parece que os incivilizados a tinham aprendido às arrecuas.

24
Mar25

723 - Pérolas e Diamantes: Os do protocolo. Chiça!

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 8 (2).jpg 

Se reunirmos coisas insignificantes em si mesmas, elas podem adquirir importância. Mas não é por isso que nos devemos modificar levianamente. Há ocasiões em que não podemos ocupar o lugar que nos destinam à mesa devido a uma indisposição. Faz parte da vida e das regras do protocolo. Não é avisado sentirmo-nos cómodos quando somos os últimos a descer para a sala das refeições. Apesar de terem sugerido que ali nunca existiu qualquer ordem estabelecida. É falso, mas o mais avisado é fazer que acreditamos na mentira. Por inteiro. No fundo, tudo não passa de uma questão de fé. Esperança. E caridade. Não é fácil o protocolo. As suas leis intrínsecas. As suas regras implícitas. Nos jantares protocolares, mesmo a comida se torna aborrecida. É tudo demasiado delimitado. Inclusive as migalhas que caem da mesa. E então que dizer dos solilóquios. Fala-se de tudo que vem à baila, enquanto uns mastigam e outros sorriem e meneiam a cabeça em sinal de aprovação. Há até aqueles que, como diz um personagem de Charles Dickens, “preferem ser derrubados por um homem que tenha sangue azul a ser levantado por um que o não tenha”. Tudo não passa de uma questão de protocolo. Existem também sempre aqueles que são exímios em formarem uma aliança defensiva contra um inimigo comum: nós. Nós estamos sempre destinados à confusão e à perdição. Nós tanto somos vítimas do temor como do espanto. Nessas alturas, os anjos bons costumam abandonar-nos e ali ficamos sozinhos a tentar sobreviver. Ao protocolo. Sem naufragarmos. O mais avisado é não dizer nada de importante e acreditar que os importantes despejam bênçãos sobre nós. E nós, para não estragarmos o protocolo, em vez de responder, devemos levar à boca o cálice de vinho fino. E sorrir. Como se eles fossem muito, mas mesmo muito, inteligentes. Eles, os do protocolo. Os protocolares. Sempre a fazerem soar os sinos do seu tempo. Até porque são eles os seus proprietários. Eles a porem o seu ar pensativo e a coçarem o queixo como se estivessem a barbear-se. Eles a falarem e a insinuarem que possuem ainda qualquer coisa de reserva para o que der e vier. Os outros que se amanhem. Faz parte das regras do jogo. Democrático. Ó bendita democracia! Nós temos que, a pouco e pouco, irmo-nos familiarizando com as nossas esperanças conforme se forem apresentando as ocasiões. A ocasião faz o ladrão. E tão ladrão é o que vai à horta como o que fica à porta. Agradeço aos do protocolo o terem-me facilitado esta confidência. Benditos sejam, pois são gente capaz de nos convencer dos sacrifícios necessários para atingir a desejável mediania. Essa coisa que passa a tornar-se uma parte integrante da nossa vida. Nós não queremos ser felizes, apenas rezamos para que a infelicidade não nos bata à porta. Nós o que gostamos é de nos abandonarmos às delícias da melancolia e tomarmos café expresso duas a três vezes por dia. Alguns, os mais melancólicos dos melancólicos, descobrem, por vezes, que estão sozinhos no mundo e começam a versejar como se fossem cucos à procura de pôr os ovos no ninho alheio. Outros, os que se habituaram a acreditar nos do protocolo, acabam por passar a vida a sorrir e a não reconhecerem o seu rosto no velho espelho lá de casa. Outros, ainda, passam a piscar os olhos e a beber whisky de qualidade média com duas pedrinhas de gelo, agitando-as de vez em quando para produzir o respetivo efeito sonoro. Há lá coisa mais distraidamente protocolar! É tudo tão porreiro pá que dá ganas de uma pessoa calçar umas sapatilhas e botar a fugir dali para fora. Ou até com as tamanquinhas do Zeca Afonso: “A fadiga é um dom da natureza. Chiça! Com as minhas tamanquinhas, p’ra quem não faz fortuna, mata as penas e faz covinhas…”. Com as nossas tamanquinhas toca a chispar, porreiro pá, bora lá! Já os marialvas costumam correr em cavalos que arqueiam o pescoço e levantam as patas como se também eles, os cavalos deles, pertencessem ao protocolo. Há também burros que fazem parte do protocolo. Mas manda o protocolo que não se fale deles. E eu vou cumprir com as regras protocolares. A qualquer momento, tudo à nossa volta acelera, assume a forma de um vórtice, ou de uma tempestade, e engole-nos. Vá lá, não nos deixemos cair em tentação. O protocolo é um gozo.

Pág. 1/4

Mais sobre mim

foto do autor

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Pesquisar

blog-logo

Arquivo

    1. 2025
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2024
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2023
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2022
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2021
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2020
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2019
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2018
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2017
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2016
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2015
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2014
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2013
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2012
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2011
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2010
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2009
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2008
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2007
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2006
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2005
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D

A Li(n)gar