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Entendamo-nos: a acreditar em algo, eu acredito na literatura, na música, na arte. Por isso não recomendo a burrice e abomino lugares-comuns. Sobretudo acredito nas coisas que possuem a capacidade de me comover. Reconheço que são poucas, mas, talvez até por isso, são fundamentais na minha vida.
Também aprecio o futebol, os bares modernos e os delírios dos políticos. Por vezes a verbosidade destes últimos é tocante, surrealista mesmo. Veem com olhos esbugalhados uma realidade que, de tão comezinha, chega a ser cómica. Penso que a realidade dos políticos é um jogo de espelhos. Não é a política, são eles mesmos. Não é a realidade que conta, mas eles mesmos. Espelho meu quem é mais político do que eu?
Entrementes, quando vão às festas, que é para o que servem, lançam os foguetes e apanham as canas. Descortinam numa tenda de venda de produtos regionais um alfobre de qualidades, um chuveiro de potencialidades, um aspersor de oportunidades. Gasta-se tanto dinheiro público na promoção destes certames que os feirantes que aí comerciam os seus produtos bem podiam fazê-lo a preço de saldo em vez de vendê-los, muitas das vezes, a preços exorbitantes. Até porque o consumidor já pagou aquilo tudo com a folha de impostos que lhe é imposta.
Depois relatam-nos acontecimentos públicos pífios e serôdios onde só têm olhos, e palavras, para doutores e engenheiros. Babam-se a pronunciar os títulos académicos como se eles valessem mais do que o carácter e a verdade. E deliram com as palavras ocas dos oportunistas de ocasião que vêm à província fazer de nós parvos. São os atores do costume, os astutos habituais que vão encher os bolsos para a capital e depois nos visitam unicamente nas épocas festivas e olham para nós como se fôssemos os verdadeiros índios em extinção que eles viram na sua juventude nos filmes americanos. Não sabendo que também eles, ou sobretudo eles, fazem parte desse jogo de espelhos.
Qualquer feira da cebola, qualquer mercado da jeropiga, qualquer iniciativa de venda de alhos, couve troncha, nabos, pão e chouriças, qualquer evento de venda de pedras de granito ou de copos com nomes gravados, são pretextos para dizer tontarias, elogiar instituições e tecer elogios a personalidades que, num país culto e civilizado, não passariam de amanuenses, secretários ou coladores de selos. Muitos deles são presidentes disto e daquilo. Outros são executivos, governantes ou diretores de bancos e empresas do Estado ou coisas pelo estilo.
Li um artigo de alguém eleito pelo nosso distrito para o parlamento que apenas teve olhos para tecer panegíricos aos eventos concelhios onde os seus correligionários estão no poder. Aí até uma corrida de carrinhos de rolamentos lhe parece um grande prémio de fórmula um. Somos um país pequeno, de gente pequena, mas de políticos liliputianos, vesgos e autistas.
Os partidos são hoje uma família que todos tenderíamos a apoiar, e muitas vezes apoiamos, ou apoiávamos, com muita paixão, porque as famílias de onde vimos são boas. Mas essa tertúlia de prevaricadores quando ouve falar em família pensa logo na semântica italiana.
Tanto sectarismo provoca-me urticária, tanta saloiice mexe-me com os nervos, tanto primarismo põe-me à beira de um ataque de nervos, tanta mentira põe-me a rogar para que haja inferno. E pensar que tanta desta gente vai à missa, que se confessa e que comunga, deixa-me a rezar para que Deus exista e que seja o que eles dizem que é.
Considero que para alguém chegar ao parlamento, ou mesmo ao governo, deveria ser obrigatório passar numa espécie de exame onde fossem testados os seus conhecimentos, não só em política, como em história, direito, e também em cultura geral e, sobretudo, em literacia social e humana. Mas o que por aqui continua a contar é o cartão partidário e ser amigo de quem domina a estrutura partidária.
Além disso, são capazes de escrever nos jornais textos que mais parecem atas de qualquer associação recreativa e cultural. Nem sequer se dão ao luxo de disfarçar o seu estatuto de consignatários políticos, comportando-se na política como se estivessem num jogo de futebol a apoiar a sua equipa, sem notarem que para haver jogo tem de existir adversário.
Não discutem ideias, não gostam de polémicas, evitam os concorrentes, manobram nos bastidores, conspiram na sombra. São tão maneirinhos que enjoam. Não se lhes conhece uma intervenção pública de jeito, uma ideia própria, uma obra consistente. Vivem do improviso, da lamechice, do desfile público, constantemente a sorrir como se fossem bonecos de porcelana, ajaezados nas suas vestes cómicas, como se não coubessem nelas, como se a libré lhes pesasse.
Se o ridículo matasse!
São também peritos em esfrangalhar a lógica, em aligeirar os processos, em fabricar cenários, em sorrir constantemente como se a vida, e esta miserável conjuntura que nos anunciaram como quase milagrosa, fossem motivo para a redenção.
Claro que a política, para não morrer, e com ela a democracia, tem de se reabilitar, tem de promover gente capaz, pessoas cultas, com currículos significativos, com provas dadas em defesa da causa pública.
Atualmente uma pessoa dá um pontapé numa pedra e aparece logo um candidato a presidente da Câmara, pontapeia um canhoto e descobre-se logo um candidato a deputado, abre-se uma porta do partido A ou B e damos logo de caras com um putativo secretário de Estado ou mesmo com um aspirante a ministro.
Passam da intriga e do manobrismo partidário para o Estado sem serem submetidos a qualquer tipo de audição ou escrutínio público.
Por exemplo, fala-se muito em competência e produtividade, mas nunca ouvi ninguém dos partidos políticos defender que os deputados ganhassem segundo o trabalho que produzem.
Ir para o parlamento para estar sentado a bater palmas às intervenções da “nossa” bancada e assobiar às dos opositores, para levantar o rabo para ir comer ou nos momentos da votação, é vexante, é um desperdício de dinheiro, de tempo e de palavreado. Penso que esse tipo de escassez de produtividade devia ser combatida como gordura do Estado ou como desadequação do eleito ao seu posto de trabalho.
A nobreza de um estadista não está em parecê-lo mas, efetivamente, em sê-lo. A política, e os políticos, têm também de ser chamados à tarefa da produção.
Os políticos habituaram-se a resolver tudo no ano que vem. E quase nunca cumprem. Pelo menos até agora nunca cumpriram.
Vi Magritte, era eu ainda pequeno. E com ele fiz colagens de comboios a voarem para a liberdade, saindo da lareira, como um pássaro libertando-se da gaiola. Eu perguntava. Ninguém me respondia a sério. Ainda não sou de brincadeiras. Os homens e os animais farejam sempre os forasteiros, as criaturas que parecem iguais mas são diferentes deles. O amor é um sentimento embaraçoso. Provavelmente, absurdo. Selvagem. Mas também pronto a ser domesticado. Cheio de referências culturais. Repleto de animalidade. Quando em paz e sossego, admite humildade e até autoironia. Nele perde-se todo o equilíbrio. O seu erotismo põe-nos loucos. O amor é demasiado ingénuo. Não é para levar a sério. Os que o fazem acabam por enlouquecer. O amor é ainda mais famoso e habilidoso do que o ilusionista Houdini. Dizem que há quem mate e morra por ele. Também há quem acredite na poesia. Quem ama está sempre envolto por uma nuvem de embaraço, a carregar o fardo do fascínio. É difícil de suportar. Ninguém consegue viver alimentando-se apenas de sobremesas. A ver espuma cor-de-rosa e balões coloridos a subir no ar. O arco-íris é uma ilusão de ótica. Quem esbanja amor começa, aos pouquinhos, a irritar-se. A rega gota a gota fez de algumas partes do deserto lindos pomares de laranjeiras. A possessão amorosa é demoníaca. Aí está a explicação pela qual Deus não consegue eliminar o Demónio. Nem o pecado. A possibilidade da incandescência é tal que mesmo os santos mais devotos invejam as chamas dessa iluminação e as revelações que daí possam surgir. A emoção transcendental é sempre inesperada e significativa. Novos evangelhos, precisam-se. E novos evangelistas, também. Agora o amor está obeso de tanto alimento. Chocolates, bolachas, vibradores, gel perfumado ou de frutos vermelhos, imagens 3D, posições invertebradas, bibliotecas de fotocópias a cores das mais distintas posições, poemas concretos, poemas dissolutos, poemas em forma de nada e outros de coisa nenhuma, romeus de borracha, julietas de maçapão. E segredos em pastas. E suspiros em caixas. E beijos em envelopes de e-mail. E as aves a voar. E os ovos no ninho. E os cucos a cuscar. O prazer em montras. E o amor no frigorífico pronto a ser servido como se fosse um gelado de bolas, que é necessário lamber até. Algum amor está empalhado, empoleirado no arame, pensando, quem o possui, que voa vertiginosamente, sem sair do lugar. Não sei o que sei. Nem isso me importa. É muito difícil acompanhar o amor quando ele se desloca. Ou quando sai à luz do dia. Ou quando reluz por entre os livros. Primeiro, o amor começa a invadir o quotidiano. Depois é o quotidiano que começa a invadir o amor. E depois toda a gente bem-aventurada tenta descobrir o cerne da questão. O amor é o Santo Graal desde que o mundo é mundo. O que o torna precioso é a sua efemeridade. O amor é tão mortal como nós. As relíquias desfazem-se com facilidade. O amor não é útil, nem inútil. É outra coisa diferente. Então o que é o amor? Aqui costuma haver uma ausência de resposta. Ou seja, uma ausência de resposta é uma resposta em si mesma. E eu a escrever cartas de amor, ou melhor, a copiá-las dos evangelhos apócrifos. O abismo das emoções continua no mesmo sítio. O amor verdadeiro provoca sempre uma sensação de eternidade. Pobres de nós. Mortais.
Toda a realidade é empírica. Isso leva-me a estar sempre com um pé em Husserl e outro em Heidegger. E com os dois na sua fenomenologia. A verdade é que a filosofia não é uma ciência de verdades universais. Uma dúvida metódica: por que razão os seguidores de Marx são fanáticos? Mas numa coisa têm razão, a liberdade não pode ser alcançada na poltrona. Um paradoxo: as liberdades são construções ideológicas. Autoilusões. Cada um vive a sua. E tem de lutar por ela. Eu, por exemplo, continuo a ter o sonho marxista de que será possível criar uma sociedade onde se caça de manhã, se pesca à tarde, se pastoreia ao final do dia e se faz crítica depois da refeição. Isto sem jamais nos tornarmos caçadores, pescadores, pastores ou críticos. Esta é a fantasia do marxismo. Eu acredito nisso porque acredito em fantasias e também porque sei que os seres humanos são naturalmente criativos e sociáveis. Mas também concordo com Isaiah Berlin que criticava Marx porque o filósofo alemão subordinava tudo a uma teoria determinista da história e que isso o colocava “entre os grandes fundadores autoritários de novas crenças, subversores e inovadores implacáveis que interpretam o mundo em termos de um único princípio claro e ardentemente defendido, denunciando e destruindo tudo o que entra em conflito com esse princípio. A crença dele… era daquele tipo ilimitado, absoluto, que põe fim a todas as questões e dissolve todas as dificuldades”. Por isso é que “reformista” é um termo ofensivo para os marxistas. Eles acreditavam (agora já não sei) que a sociedade comunista só podia chegar através de uma revolução violenta. O que faz dos marxistas (sobretudo os leninistas) fanáticos, não é o facto de acreditarem que o capitalismo é injusto, que a propriedade privada deve ser abolida ou que tudo tem de ser alcançado através de uma revolução. O que os torna fanáticos é a crença de que a revolução é inevitável. E que tudo é legítimo para a provocar. A revolução não é, sequer, passível de discussão. Ela vai acontecer. Quer queiramos ou não. Só é necessário perceber quando é que estão criadas as condições para a desencadear. Há sempre uma porta entreaberta para podermos entrar nela. Mas depois ninguém dela pode sair. Os marxistas (do rito leninista e trotsquista) acreditam piamente que a liberdade e a igualdade são conceitos inseparáveis. O zelo em excesso também mata. Estou até em crer que foi isto o que aniquilou o comunismo enquanto prática. Peço de novo ajuda a Berlin: “Tudo é o que é: liberdade é liberdade, não igualdade ou equidade ou justiça ou cultura, ou felicidade humana ou uma consciência tranquila.” Eu continuo a pensar que a liberdade se baseia, sobretudo, no princípio da tolerância, que permite que as pessoas escolham os seus próprios gostos e valores e que persigam os seus próprios fins. Mas convém esclarecer que a tolerância não é diferente da liberdade, da igualdade ou da sociedade sem classes. Tem apenas outro fim. Mas será possível tolerar as pessoas intolerantes? As pessoas intolerantes raiam a obscenidade. Mas. Mas convém lembrar que o nosso sistema democrático está baseado na liberdade e na dignidade dos indivíduos. Os estados comunistas ignoraram, logo desde o início, estes valores. Foi por isso que fracassaram. Mas eu ainda tenho uma réstia de esperança no futuro da humanidade porque li “O Manifesto Comunista” num livro brochado, como os editados pelo saudoso Miguel Torga, possuindo eles uma característica comum, são muito rebarbativos. E até poéticos. Sendo que o livro de prosa poética de Marx e Engels é um pouco mais chato do que os diários do escritor de São Martinho de Anta. E então que dizer da poesia de Adolfo Correia da Rocha, feita a golpes de podão. Já oiço por aí dizer: “Apóstata.” Pois que o seja. A mim não me assustam os bajuladores. Estou até em crer que a obra de Miguel Torga consegue aguentar, com um sorriso maneirinho, as minhas penosas críticas e consegue sobreviver ainda melhor sem o cântico dos sereios bajuladores. A verdade é que comprei “O Manifesto Comunista”, “Os Bichos” e o “Tintim” num quiosque da minha terra. O 25 de Abril tinha saído há pouco do forno. Depois baralhei tudo. E comecei a escrever poemas e cartas de amor. Sim, eu vivo da paródia. Peço desculpa.
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