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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

29
Mai25

Poema Infinito (762): O máximo esplendor

João Madureira

 

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Muitas palavras começam a ser erodidas pelo esquecimento. Muitas estão no limite da legibilidade, corrompidas pelo tempo e pela humidade. O tempo distorce as recordações. E mistura as palavras escritas. A prosódia é um despropósito. A predisposição é para as reminiscências do passado. Fragmentos, desabafos, incidentes cómicos. Para o ato da escrita valem tanto as histórias alheias como aquelas em que participámos. Tento alcançar algumas com as mãos ajudado pelo ar que desloco ao caminhar. São essas as mais incertas e inseguras. Todos os dias tentamos fugir um pouco à loucura que nos rodeia. Eu a passear em Roma, Berlim, nas avenidas de Barcelona, nos canais de Estocolmo, ou nos parques de Londres. Sem nunca lá ter ido. A extasiar-me com o contraste entre a sua dinâmica e a sua opulência. E a definhar com a desilusão que a tacanhez intemporal de Lisboa me provoca. O meu tempo está moribundo. A fantasia é o meu refúgio. Viver em Portugal traz um risco acrescido de mediocridade. Apesar do ar puro da província. Apesar de Lisboa. E do Porto. E do Camões. E do Fernando Pessoa. E do José Saramago. E do Diniz Machado. E do António Lobo Antunes. E da Agustina Bessa-Luís. E do Torga. E do Aquilino. E do Eça. E do Camilo. Imagino-os a almoçarem todos juntos, a gargalharem, a comentarem a ressaca de velhas conversas, a sincronizarem as cumplicidades. A insistirem em. Em desistirem de. A procurarem paragens mais benignas. Todos a viverem dentro da sua bolha de realidade. Na sua realidade paralela. As suas ruas ficcionais são tão inclinadas que é preciso ter muito cuidado para não nos desequilibrarmos. Fixo-me mais num ou noutro por causa de algum detalhe aleatório ou devido a palavras que despertam em mim algum tipo de reminiscência fugaz. Estamos todos fartos de décadas de paz podre. De frivolidades. Até o 25 de Abril parece agora um enredo de segunda categoria. Tanto os factos, como as invenções. Narrativas coletivas. Realidade pegajosa. Personagens em peregrinação a Fátima. Ou ao Marquês. Ou a S. Bento. Pausas forçadas. Frivolidades. Parece que todos chegamos aqui ao sabor da errância. Por puro acaso. Este país parece um caos distraído. Sim, este é um país de poetas que não sabem escrever poesia. Apenas redigem reproduções bacocas de poesia importada. Este é um país de tédio, de obrigações familiares, de gente que se contenta com a sua vida de pequenos comerciantes. O Estado pode ser público, mas o poder é privado. E o povo povinho povo sempre atento aos ruídos da vizinhança. A ambiguidade é a alma desta pátria mal-amada. O máximo esplendor luso reside no saloio espetáculo de observar de perto a magnificência do florir de uma rosa. Ou, mais recentemente, de um cravo que é vermelho mas não tem cheiro. Nem o cravo, nem a rosa, nem a flor da laranjeira. Noites e noites de insónia a ouvir Zeca Afonso e as suas tamanquinhas musicais. Só nos faltava que Salazar tivesse escrito um romance nas suas horas de ócio. A claridade deste país não nos tira da sombra. A frustração é demasiado potente para não ser verbalizada. Estar aqui começa a ser uma violência. Descobrir os pormenores do cenário provoca um desfile de memórias e requer muito esforço. Estamos sempre no sítio errado há hora certa. Sempre a apanhar boleia para lado nenhum. Sempre a olhar para o futuro com melancolia. Como se fosse o passado. E lá vamos nós pelos sumidouros do tempo. Aleluia!

25
Mai25

731 - Pérolas e Diamantes: Aparentemente

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 4 (2).jpg 

Aparentemente vivemos num mundo de algodão-doce, mas depois dão-nos vinagre feito de vinho a martelo para desenjoar. A publicidade é malévola. Não duvidem. A maioria dela é feita para convencer as pessoas a pagarem mais do que devem para adquirirem coisas de que precisam menos do que imaginam. E isto tanto é válido para o sabão, como para a salsicha, para o telemóvel, como para a escolha do primeiro-ministro. A maioria da publicidade possui uma irrelevância insana. Mesmo que agora nos seja vendida pelos bobos da corte, disfarçados de humoristas. São como cogumelos alucinogénios. Bonitos por fora, mas tóxicos por dentro. A rir, a rir, vendem-nos tudo e mais não sei o quê. A banalidade é agora fonte de humor servido em intervalos enormes, entre a guerra da Ucrânia e um apetitoso hambúrguer. Todos choramos e salivamos, sem sequer sair da frente do ecrã. Todos estamos irmanados no entusiasmo da banalidade. Através da arte pop, converteram o entusiasmo em estética e esta em bifes de peru ou em tofu. Ou seja, comemos qualquer porcaria, desde que seja servida por uma estética irrepreensível. Andy Warhol tornou-se famoso por ter pintado(?) latas de sopa. Nós, mais do que consumirmos produtos, consumimos estímulos. O efeito Pavlov tanto é dirigido ao cão como ao seu dono. O consumo é, finalmente, democrático. A democracia deu-nos liberdade de escolha. A arte já não tem fronteiras. McLuhan avisou: “Manter todos no estado de impotência gerado pela excitação mental prolongada é o efeito tanto de muitos anúncios como de grande parte do entretenimento.” As suposições são perigosas. Mas estou em crer que a publicidade moderna é uma forma de terrorismo kitsch. A publicidade serve essencialmente para tentar vender bens que as pessoas não precisam mas que são persuadidas a desejar. Vivemos todos, publicitários, empresas e consumidores, dentro da ratoeira do argumento racional sobre custos e eficiência. Apesar da sua aparente bonomia, e nisso os bobos da corte são essenciais, a publicidade é coerciva. Comicamente coerciva. Aposta tudo no desenvolvimento do excedente comportamental que fomenta. Pavlov vai agora direitinho às emoções. A publicidade aumenta os automatismos. O aspeto maléfico da publicidade não é apenas semântica. A mente dos consumidores está sempre em hiperatividade. Os apelos são constantes. A publicidade está por todo o lado.  Todos os agentes sociais nos vêm com o discurso do desinteresse pessoal. Os políticos em relação aos negócios. Os negociantes em relação aos políticos. E os intelectuais universitários em relação a uns e a outros. Mas todo esse discurso é falso. Ou seja, todos dizem que pensam e agem fora dos constrangimentos familiares, políticos e financeiros. É tudo treta. Publicidade enganosa. A promiscuidade entre políticos, empresários e académicos é por demais evidente. É uma plataforma giratória de interesses. Muitos deles ilegítimos. A linguagem política, logo publicitária, sobretudo a pós-moderna, tem tendência para tentar imitar a linguagem literária, figurativa e polissémica. Mas com a última intenção de que os eleitores/leitores façam dela uma interpretação literal. A grande maioria é o que faz. Ou porque não a percebem, ou porque tanto lhes faz. E a mais não são obrigados. Tudo o que rufa e toca é tudo a mesma tropa. Não é preciso andar à caça da mensagem. Ele é óbvia e sempre a mesma: comprem. O resto não interessa. A nossa realidade atual vive ora inclinada para um lado, outra para o outro. Mas quase nunca na posição ereta. Por isso é vulnerável. Há por aí muita gente a dizer que a publicidade até é nossa amiga. Do consumidor, entenda-se. Mas com amigos destes não precisamos de inimigos para nada. A publicidade não permite possibilidades alternativas. Compra agora, pois não sabes se chegas aos saldos. As compras são o que dão sentido à vida. Será que a vida quotidiana consegue ultrapassar as falsificações? E as dúvidas? Bem vistas as coisas, onde é que se pode comprar a melhor carne de veado? Será no Continente, no Pingo Doce ou no Auchan? E o viagra, masculino e feminino, pode encomendar-se pela internet. Sempre é mais discreto. Bons conselhos e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém. Para uma boa canja, o melhor é comprar frango do campo. Ovos? Os melhores são os matinados.

22
Mai25

Poema Infinito (761): O gelo da diversão

João Madureira

IMG_4383 - cópia 4 (7).jpeg 

Aquele verão foi invulgarmente quente, com uma série de dias longos e secos. Uns atrás dos outros. Um sol sem nuvens ameaçava insolações, escaldões e bolhas na pele. Todas as janelas de casa estavam abertas. Ouvia-se música no leitor de cassetes. Eu rodopiava, como se dançasse com um par imaginário. No quarto havia sombra e frescura. Eu sonhava com uma Branca de Neve colorida, carnuda, de mamas pequenas, em versão infantil. No espelho de água do rio, o mundo parecia parado. Fui tomar banho como se fosse um peixe atrapalhado a quem cortaram as barbatanas. Depois calor e mais calor. Aborrecimento. Mas o tempo não parava. A minha memória deu um salto. No improvisado campo de futebol, com as pernas azuis de frio, era quase sempre o último a ser escolhido. Já estava à espera, mas não era por isso que deixava de ser menos doloroso. Depois lá andava a correr de um lado para o outro, esfregando o peito e a cara sem saber distinguir se o vento me congelava ou me queimava. O professor gritava que devia correr mais por causa do frio. Eu calçava sapatilhas. Os mais convencidos da sua arte futebolística usavam chuteiras com pitões. Parecia que voavam. Eu tentava mostrar-me empenhado em seguir a direção da bola, mas não conseguia convencer-me interiormente em aproximar-me dela. A luta em seu redor era renhida. As caneladas não tinham fim. Depois, o professor deixou de lançar berros de estímulo e passou a tentar a motivação dos insultos. Era bom nisso. E também nos golpes de palmatória. Depois de muitos anos a observar os recantos obscuros das almas da rapaziada, sabia bem onde encontrar a dor que gerava a motivação. Atirava impropérios que envergonhavam uns rapazes e punham os outros a rir, apesar de estarem já ofegantes e cansados. Quase todos tinham uma película de ranho, saliva e sujidade em redor dos lábios. A cara dos mais lestos revelava o estado de plena satisfação. Eu, pelo sim, pelo não, continuava a mover as pernas geladas de azul e corria pelo campo. Uns riam e outros estavam à beiras das lágrimas. Ficávamos sempre com as pernas cheias de lama, com as roupas esgaçadas. Era frequente usarem-se roupas de tamanhos maiores, ou de irmãos ou de amigos ou familiares próximos, camisolas antigas, viradas do avesso e calções de ginástica. Quando a bola passava por entre os rapazes, eles cavalgavam como garranos do Gerês, galopando como uma manada, dando a impressão de que receavam ser separados. Muitas vezes a partida de futebol acabava no meio de insultos, pontapés e murros na cara. Para dizer a verdade, eu comportava-me como o animal de estimação da minha mãe. Evitava o confronto direto. Olhava para os rapazes que me insultavam, à semelhança do professor, e a minha dor crescia ainda um pouco mais. Depois tudo acabou no meio do caos. O Sol já estava baixo no céu. Sob a sola das botas dos rapazes, ouvia-se o ruído rápido da erva dura e estaladiça causada pela geada de inverno. Escutava-se um silêncio feito de intervalos, como se estivéssemos dentro de um filme mudo. Ao passarmos em frente de uma taberna, na entrada da vila, alguns rapazes tentaram imitar os passos dos homens embriagados. Eu odiava-me por não conseguir ser divertido como eles. Olhei para dentro da taberna e reparei nos dois calendários, sujos pelas moscas, que estavam pendurados na parede. Um era de Nossa Senhora de Fátima empoleirada numa azinheira e os três pastorinhos de mãos postas a rezar e o outro expunha o corpo de uma mulher voluptuosa, de coxas e mamas à mostra. Foi então que aprendi o humor discreto da realidade. A diversão tem vários caminhos. Em casa esperava-me a mãe, risonha, com um par de chuteiras dentro de uma caixa. Pouco uso lhes dei.

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