736 - Pérolas e Diamantes: E as pessoas a passarem...
Entra-nos tudo pela casa dentro. E não é pela porta, mas pela televisão. Tudo num instantinho. Entrevistas e o resto. As figuras ditas públicas, ali em diferido como se estivessem em direto. Ou em direto, como se estivessem em diferido. Tudo uma mentira pegada. Exercícios de vaidade, numa pose arrogante. Sempre a falarem-nos de cima da burra. Entrevistas onde se sente o fingimento, a tomarem posições de falsa generosidade e tolerância. Sempre a comporem-se como quem se arranja ao espelho. Conversas adjetivadas a cheirarem a rosas e a excrementos. Subterfúgios. Desabafos de deitar ao lixo. E os espectadores a olharem para o ecrã, depois para o jornal e também para o livro do Saramago e a começarem por ler as gordas do semanário. E a abrirem a boca de sono. Pois ainda conseguiram arranjar tempo para fazerem compras no supermercado. O Saramago ficará para o fim de semana, como as relações sexuais. E o Lobo Antunes para os anos bissextos. Graças a Deus que este espectador, imaginário, teve tempo e gosto para comprar um romance do nosso prémio Nobel. E outro do romancista que escreve com a mão suplente de Deus. Ainda bem que resistiu ao apelo dos livros de venda imediata. Aos livros de autoajuda. Aos livros de pessoas que falam com Deus, aos livros esotéricos, aos livros pretensamente históricos. O mercado manda em tudo, impondo uma nova forma de vender livros. Até as caras larocas da televisão escrevem livros. Não devemos confundir constantemente as nossas paixões com as nossas ideias. Olho agora para o que escrevi e penso que também eu gostava de ser alegre. Por que razão as coisas bonitas morrem dentro de nós? Eu gosto de Herberto Hélder, mas continuo a não entender as suas vírgulas de amianto e a razão de tanto escrever a palavra sangue. E também confesso que não aprecio a Sophia, nem os seus poemas frios. Estamos sempre nas mãos de outros que decidem por nós. E chamam a isto democracia. Provavelmente será, mas já está na hora de arranjarem uma coisa que funcione com a participação de todos. Este tipo de democracia tem cada vez mais lugares vazios. Criticar a democracia não é crime. Crime é anestesiá-la para que não se mova. Para que não se mexa. Para que não fale. E nós a vivermos em função das referências. Só que quando lhes dá o vento da verdade elas desfazem-se em pó. Grande parte daquilo que escrevem sobre as ditas referências não é verdade e o que sobra é pura montagem cinematográfica. Eu até gostava de ser terno. Mas fui educado a reprimir afetos. Quem gosta de pessoas não necessita de andar a mostrá-lo. Quem exibe os afetos são os hipócritas. Querem uma verdade? Não interessam as quecas que cada um deu. O que agora interessa é continuar a ser capaz de as dar. É uma merda quando a capacidade criativa começa a dar de si. E depois há o egoísmo. E os bifes. E os coitos em cima de pianos. E os orgasmos vitalícios. Bardamerda os falsos Lobo Antunes, Saramagos, Rothes e outros amantes da literatura do autoflagelamento. A esses recomendo os seminários. Ou o cilício intelectual. Eu não acredito na inspiração, apenas no trabalho. Só os parvos dizem que há obras incontornáveis. Nenhuma obra de arte nasce de geração espontânea. Ninguém cria a partir do vazio. O pior é ficar a meio da ponte. Podemos demorar muito tempo no caminho, mas o importante é chegar. Eu não quero trair. Eu não quero trair os meus livros. Os meus escritos. Os meus poemas. Um dia fizeram aquela pergunta parva ao Lobo Antunes sobre quais os livros que levaria para uma ilha deserta. Respondeu que levava livros sobre como construir barcos. Então vamos lá ao ritual. É bom termos a perceção da alegria. Ter tempo para a conversa com amigos. Da minha cidade, gosto da paisagem. E de olhar para as estantes cheias de livros. Alguns têm insónias. Olho para outros e dói-me o abandono da memória. A escrita afeta-nos. A todos. Tudo parece igual mas tudo mudou. A minha mãe fazia tricô. Eu escrevia. Foi com ela que aprendi esse tipo de paciência. Quando mergulhamos dentro de nós, estamos a entrar dentro dos outros. Personagens incluídos. Um escritor amigo disse-me uma vez: “Escrever custa os olhos da cara. Eu a sofrer por todos. E ninguém a sofrer por mim.” E as pessoas a passarem por cima dos livros sem darem por isso.