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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

30
Jun25

736 - Pérolas e Diamantes: E as pessoas a passarem...

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 4 (3).jpg 

Entra-nos tudo pela casa dentro. E não é pela porta, mas pela televisão. Tudo num instantinho. Entrevistas e o resto. As figuras ditas públicas, ali em diferido como se estivessem em direto. Ou em direto, como se estivessem em diferido. Tudo uma mentira pegada. Exercícios de vaidade, numa pose arrogante. Sempre a falarem-nos de cima da burra. Entrevistas onde se sente o fingimento, a tomarem posições de falsa generosidade e tolerância. Sempre a comporem-se como quem se arranja ao espelho. Conversas adjetivadas a cheirarem a rosas e a excrementos. Subterfúgios. Desabafos de deitar ao lixo. E os espectadores a olharem para o ecrã, depois para o jornal e também para o livro do Saramago e a começarem por ler as gordas do semanário. E a abrirem a boca de sono. Pois ainda conseguiram arranjar tempo para fazerem compras no supermercado. O Saramago ficará para o fim de semana, como as relações sexuais. E o Lobo Antunes para os anos bissextos. Graças a Deus que este espectador, imaginário, teve tempo e gosto para comprar um romance do nosso prémio Nobel. E outro do romancista que escreve com a mão suplente de Deus. Ainda bem que resistiu ao apelo dos livros de venda imediata. Aos livros de autoajuda. Aos livros de pessoas que falam com Deus, aos livros esotéricos, aos livros pretensamente históricos. O mercado manda em tudo, impondo uma nova forma de vender livros. Até as caras larocas da televisão escrevem livros. Não devemos confundir constantemente as nossas paixões com as nossas ideias. Olho agora para o que escrevi e penso que também eu gostava de ser alegre. Por que razão as coisas bonitas morrem dentro de nós? Eu gosto de Herberto Hélder, mas continuo a não entender as suas vírgulas de amianto e a razão de tanto escrever a palavra sangue. E também confesso que não aprecio a Sophia, nem os seus poemas frios. Estamos sempre nas mãos de outros que decidem por nós. E chamam a isto democracia. Provavelmente será, mas já está na hora de arranjarem uma coisa que funcione com a participação de todos. Este tipo de democracia tem cada vez mais lugares vazios. Criticar a democracia não é crime. Crime é anestesiá-la para que não se mova. Para que não se mexa. Para que não fale. E nós a vivermos em função das referências. Só que quando lhes dá o vento da verdade elas desfazem-se em pó. Grande parte daquilo que escrevem sobre as ditas referências não é verdade e o que sobra é pura montagem cinematográfica. Eu até gostava de ser terno. Mas fui educado a reprimir afetos. Quem gosta de pessoas não necessita de andar a mostrá-lo. Quem exibe os afetos são os hipócritas. Querem uma verdade? Não interessam as quecas que cada um deu. O que agora interessa é continuar a ser capaz de as dar. É uma merda quando a capacidade criativa começa a dar de si. E depois há o egoísmo. E os bifes. E os coitos em cima de pianos. E os orgasmos vitalícios. Bardamerda os falsos Lobo Antunes, Saramagos, Rothes e outros amantes da literatura do autoflagelamento. A esses recomendo os seminários. Ou o cilício intelectual. Eu não acredito na inspiração, apenas no trabalho. Só os parvos dizem que há obras incontornáveis. Nenhuma obra de arte nasce de geração espontânea. Ninguém cria a partir do vazio. O pior é ficar a meio da ponte. Podemos demorar muito tempo no caminho, mas o importante é chegar. Eu não quero trair. Eu não quero trair os meus livros. Os meus escritos. Os meus poemas. Um dia fizeram aquela pergunta parva ao Lobo Antunes sobre quais os livros que levaria para uma ilha deserta. Respondeu que levava livros sobre como construir barcos. Então vamos lá ao ritual. É bom termos a perceção da alegria. Ter tempo para a conversa com amigos. Da minha cidade, gosto da paisagem. E de olhar para as estantes cheias de livros. Alguns têm insónias. Olho para outros e dói-me o abandono da memória. A escrita afeta-nos. A todos. Tudo parece igual mas tudo mudou. A minha mãe fazia tricô. Eu escrevia. Foi com ela que aprendi esse tipo de paciência. Quando mergulhamos dentro de nós, estamos a entrar dentro dos outros. Personagens incluídos. Um escritor amigo disse-me uma vez: “Escrever custa os olhos da cara. Eu a sofrer por todos. E ninguém a sofrer por mim.” E as pessoas a passarem por cima dos livros sem darem por isso.

26
Jun25

Poema Infinito (766): A queda das divindades

João Madureira

IMG_4383 - cópia 2 (4).jpeg 

As divindades caem dentro de um céu setentrional. Embalsamadas pelos poetas. Fumigadas pelos filósofos. Autocriadoras. Sublimes. Desnecessárias. Cinzentas. Toda a sua vontade desabou no vazio. Deus manda o Diabo tirar as castanhas do lume. Mesmo as divindades primárias atingem o auge da angústia isoladas no seu vazio. As distâncias entre nós e a divindade são hiperbólicas. Basta de realismo e prosopopeia. Escrevo para manter a realidade a uma distância de segurança. Procrastino. Deus, que palavra tão abstrusa! Entro dentro da genial horizontalidade da memória onde o pai ainda está na estação ferroviária de Chaves a acenar para nós. Tudo parecia não querer entrar em conflito com o aprumo da realidade. A memória parece viciada. Estamos dentro de um novo Matrix existencial. Deuses traidores são também traídos. O pai escorrega na neve, dentro da minha memória congelada. Não se magoa. Já Deus desliza numa pista de gelo de cross-country. E acaba por me magoar com a sua velocidade de incompreensão. Longos serões de inverno nos esperam. Salpicados por uns poucos instantes de ternura. Haverá discussões. Nervosismo. E a banalidade dos pretextos a decidirem as nossas existências. A de Deus incluída. E o Diabo a tirar as castanhas do fogo porque Deus tem medo de se queimar. Argumenta que não está habituado. A linguagem dos evangelhos parece uma paródia. Rostropovitch primeiro tortura o violoncelo e depois toca Bach. Paulo fala ao Coríntios. Por vezes, ao charlatão também lhe foge a boca para a verdade. A doença de Deus não é culpa de ninguém a não ser do próprio. Coitado do filho. Até a esperança de que ele exista é triste. Até as estrelas do céu estão invertidas. Sem luz não há sombra. As novas armas argumentativas são curtas. Brancas. Lisas. Quando era mais jovem, o eterno Deus, o Deus do Velho Testamento, costumava ficar muitas vezes sozinho com a sua ira. Rodeado de seres humanos fracos, mandriões, invejosos, analfabetos, bêbados, fornicadores, sodomitas. E de estátuas de sal. E de reis traiçoeiros e intriguistas. Deus envelheceu rápido, agora exibe barba branca e comprida, olhos inchados, andando de um lado para o outro como um leão enjaulado, a gritar com os humanos e a ralhar constantemente com o filho. Acabará por matá-lo de novo, contra sua vontade. Afirma que a sua máxima criação o humilha todos os dias. E a cristandade aí anda a trouxe-mouxe sempre a cometer os mesmos pecados. A responsabilidade da obra é sempre do seu Criador. Criou-nos à sua imagem e semelhança, mas sem se ver ao espelho. Uns contentam-se com a sua derrota. Outros alegram-se saboreando a vitória dos seus rancores. Há gente para tudo. As suas palavras perentórias de salvação não se transformaram em realidade. Agora aí está sozinho à espera das notícias da derrota. Os humanos pensam, à revelia, que quem não tem honra não pode ser desonrado. O Deus da Providência não renuncia à sua habitual prosopopeia. Deus, que palavra tão abstrusa! A competência divina já se esgotou há muito tempo. Até Deus tem horror ao vazio. Há falta de respostas competentes, Deus opta pela estratégia humana mais habitual, desde que lhe conferiu o milagre da palavra: a retórica. E a luta continua entre os homens e as mulheres livres e justos e as mulheres e os homens servis, desorientados e mortificados. Enquanto disparam fazem o sinal da cruz. Será isto a eternidade? Não é divino invocar o nome da verdade em vão.

23
Jun25

735 - Pérolas e Diamantes: É tão bom ter saudades!

João Madureira

 

Apresentação3-2 - cópia 8 (6).jpg 

E por aqui andamos a esgrimir argumentos contra o vento, contra as muralhas de granito, contra as pedras da calçada. Sempre com um descuido infantil que nos leva a ser detestados por uns e mal-amados por outros. E por aqui continua pasmada e blandiciosa a nossa urbe. Todos nós sofremos, sem quebra de vontade, as admiráveis qualidades de quem nos governa. Com candura. Com um certo alheamento real que faz de nós aquilo que somos. Mantendo-nos como reclusos voluntários neste imenso e frondoso jardim, onde corre um perfume almiscarado, auxiliado pelas brisas da montanha. Dando, os mais devotos, graxa aos santinhos, alimentando os brandos costumes, colorindo a mística, praticando os sagrados mandamentos da lei e da grei, submissos uns, insubmissos outros, mas estes últimos já sem o militante ardor fanático. Nisso fomos progredindo razoavelmente por obra e graça do Divino Espírito Santo. Amém. Nos dias de primavera, levitamos como flores nesta prosaica urbe. Uns continuam a professar a sua fé católica e outros a praticar o seu dom, quer ele seja literário, plástico ou musical. Cada um com a sua mania, a que associam o respetivo engenho e arte. Subversão e consciência fazem parte do foro íntimo de cada artista. Por vezes há festa na paróquia, muita dela santa, mas também existe a outra quota parte de pândega profana, altamente subsidiada pelos ilustres autarcas, que não se cansam de esbanjar dinheiro em música pimba, com uma ou outra exceção, e  foguetório preso e solto, tão ao gosto do nosso querido povo povinho povo. Todos entre a dança e a contradança. Todos entre a hóstia e o folar, entre a água benta e o vinho tinto de garrafão. Tudo na boa paz do Senhor. Já não é o bodo aos pobres, mas foi lá que se foi inspirar. Os bons hábitos e os singelos costumes fazem parte da nossa herança cultural. Pai nosso. Caldo grosso. Chicha gorda. Não tem osso. Come tu. Que eu já não posso. Pai nosso. Rilha o osso. Rilha tu. Que eu já não posso. Avé ... Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!!! Pronto. Basta. Chega. De inspiração. As boas práticas e primícias continuam nos Paços do Concelho. E a igreja da diocese continua limpa e bem iluminada, à semelhança e imagem de quem a administra e utiliza. Até já há muito bom jacobino que a frequenta sem que ela lhe caia em cima. Os cérebros dos homens pós-modernos são cada vez mais monomaníacos. Tem dias em que a nossa cidadezinha fica alegre e buliçosa, onde alguns turistas andam à procura de pedregulhos afonsinos embutidos, dos negros brasões e de outras coisas típicas e classificadas. Pelos arredores passeiam os admiradores de pedras, pedrinhas e calhaus, no rasto de dólmenes, castros, torres, calvários e outras pitorescas e respeitáveis ruínas. No burgo, ao entardecer, uns bebem o chá das cinco nas pastelarias e outros o fino das seis nos bares da praça. Nasce e põe-se o sol sempre a iluminar o cinzento das muralhas e as ameias da torre do castelo, onde as andorinhas lançam guinchos enquanto sulcam o céu azul. Só falta pôr cá um discípulo de José de Arimateia especializado em pregar cruzes e esculpir túmulos para que a nossa santa terrinha se torne num lugar de peregrinação. Mas, por muito que nos custe, já não bate por cá o coração de outras eras. Antigamente havia calúnias e desonras. Agora é mais vícios. Tudo ao molho e fé na ciência. Antigamente, até as sinetas das capelas emitiam um som lânguido e feminino. Agora já ninguém distingue o trigo do joio. O feminino do masculino. Perdeu-se o timbre da blandícia. O temente e delicioso sobressalto do amor. Agora é mais sexo e força. As lindas cachopas já não usam minissaias. Já ninguém vive na cidade, mas em vivendas espalhadas pela veiga. Do esplendor antigo não restam mais que sombras. Enegrecem as escadarias dos solares, ninguém as sobe e as desce. Esfarelam os azulejos ao longo dos muros dos jardins. Por todo o lado alastra o musgo aloirado, paradoxalmente muito vivo e viçoso. Lucilante, como diria o mestre Aquilino Ribeiro. Por entre as ruínas, por vezes, ainda é possível ver as glicínias dos tempos da magnificência a serpentear. Mete dó observarmos as ruínas a arruinarem-se sem que alguém de posses, ou bom gosto, lhes deite a mão. E algumas lágrimas nos vêm aos olhos quando vemos, ouvimos e cheiramos um carro de bois a conduzir o estrume à horta. É tão bom ter saudades.  Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!!!

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