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Há variações de peso e as variações Goldberg. Há variações e o mesmíssimo barbeiro António. E até existem as sete aparições de Lenine sobre um piano. Danço ao peso da poesia com a música da revelação. Pesam-me os olhares. Perco-me neles. Mas eu tenho no bolso um mapa de saídas. E uma tabela de algoritmos. Já não há quem consiga transformar o mundo velho num raciocínio mágico. Recorto pensamentos e dialogo com as coisas. O teu olhar continua a provocar-me estremecimentos. E eu às voltas com o meu mundo privado, com os livros de teoria política, poesia, teatro, a semiótica dos quadros, a engrenagem dos animais e a desintegração poética dos haikus. Todas as coisas que eu julgo saber nascem das conversas, dos livros e de olhar para os pormenores das folhas moribundas do outono. Não gosto de brincadeiras, mas entretenho-me a brincar com a linguagem. A minha escrita tem o sentido da destruição da sociedade hierárquica e classista. Luto contra a imutabilidade aparente das coisas. Eles são tão aldrabões. A poesia tem de servir para alguma coisa. Eles são tão mentirosos. É difícil dar com a porta de emergência. E nós a discutirmos com as sombras. Há mais desilusões que gambozinos. Há que rasgar a aura sagrada dos donos disto tudo. A minha consciência de classe é uma desilusão. A teoria política é uma desilusão. Faz-nos abdicar da beleza das coisas. A Luzia tem razão. A surpresa pode ser tudo. E mais alguma coisa. O homem novo do novo mundo foi o que envelheceu mais rapidamente. Deixo pousar as preocupações e o vento levar as nuvens para longe. Despediram a prestidigitação. Estamos sempre desprevenidos no momento do impacto. Ando a aprender a ser invisível. O voo dos pássaros está em ruínas. E o silêncio a expandir-se como a água do mar por cima da areia da praia. E eu à escuta do mundo. E o mundo lá fora. Aos trambolhões. Toda a boa vontade cabe dentro do bolso de um casaco. E os ladrões a entrarem no sítio errado. As vozes antigas já não doem como doíam. São as últimas representantes das presenças difusas. A mãe já falecida fundiu-se nas coisas. Nos retratos. Nos naperons. E a teimosia dos pardais em dar pulinhos irritantes. E um dos últimos murmúrios da mãe a dizer sou eu sou eu sou eu. Tenho a memória da água. É complexa esta tranquilidade. Líquida. Informe. Molho os lábios antes de ir para o deserto. Respiro o silêncio antes de falar, enquanto cresce a incerteza. E os insetos a fugirem pelos buracos da parede. Reparo agora nas sombras das aves que voam. Olho para as paredes da velha casa e penso na paciente fadiga das trepadeiras. Escrevo palavras feridas no caderno de folhas quadriculadas. Há uma certa ingenuidade em tentar ser feliz. E nós a tentarmos ser as hipotenusas dos triângulos amorosos. E o verde descansado dos lameiros a ceder ao entardecer. E eu a tentar gravar o murmúrio cansado das ruínas e do amor efémero e canibal dos louva-a-deus. E a tentar monitorizar a genética de Mendel que fixou a hereditariedade das ervilheiras. E a espera a crescer. E a razão a enganar-se. Sindbad continua a viajar no tapete e continua a afligir-se quando sopram ao mesmo tempo os quatro ventos. O tempo passa mas não muda o que já foi. No último Natal, Maria fechou os olhos de dor por causa do parto recente. O seu filho podia ser divino, mas a sua dor era demasiado humana.
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Motivos, crenças e descrenças poéticas ou coisa parecida
O que não tem justificação, justificado está. Este texto, propositadamente inconclusivo, até podia ir por aí, mas não vai. São insondáveis os caminhos do Senhor, dizem. Mas não é este o caso. O Poema Infinito vive da variação irónica e inventada do seu nome. Há acasos assim, pois é infinito enquanto eu for vivo. Tanto quanto sei, o seu mistério reside na capacidade de expansão contínua de sentido, sustentada por uma linguagem que não se deixa fechar em si mesma. A sua principal característica reside na reconfiguração de cada verso, onde cada palavra é capaz de abrir múltiplos caminhos de interpretação; na sua inexauribilidade semântica, pois vive da tensão entre o que eu pretendo dizer e o que ainda serei capaz de transmitir; na procura constante de um ritmo fluente e meditativo; na intertextualidade filosófica e mística, pois, por incrível que pareça, procuro socorro nos fragmentos bíblicos e apócrifos. E também numa espécie de erotismo ontológico, onde o desejo não é apenas físico, mas, sobretudo, espiritual. Ai Salomão, Salomão, o quanto me ensinaste! Penso que a luta do poeta, perdoem-me a imodéstia, se baseia na abertura constante de sentido, sem aprisionamentos estilísticos ou semânticos, daí a sua característica supostamente infinita. O poema não termina, ele tem de continuar dentro do leitor. Daí a perseverante tentativa pela intensidade, pelo ritmo, pela densidade simbólica, pela tensão emocional, pela fluidez. Sinto-me muitas vezes a mergulhar dentro do labirinto da linguagem. A conceção infinita não reside na sua extensão, mas no processo de metamorfose contínua. O poema não avança, transforma-se. Escrevo cada verso na tentativa de reescrever o anterior. Cada imagem dissolve-se no preciso momento em que nasce a seguinte. É essa intenção criativa que dá a sensação de movimento interno perpétuo, como se fosse um organismo verbal em mutação constante. A minha inspiração, confesso, não vem de um escritor mas do movimento perpétuo do compositor e guitarrista Carlos Paredes. Ao contrário de muitos poetas que separam o abstrato do sensível, a provável novidade destes meus poemas está na intenção de fundi-los. O pensamento emerge do desejo, o desejo da memória e a memória da linguagem, numa espiral contínua, num ciclo que nunca se encerra. A voz d’O Poema Infinito não é um “eu” estável, nem sequer baseado num “narrador” tradicional. Pelo menos nisso acompanha as minhas características primordiais. Tanto é uma entidade oscilante, como um sopro inexorável de vida, como um silêncio cósmico, ou até um verbo. Ora isso confere-lhe um tom muitas vezes oracular, mas sem cair na pompa solene dos poetas proféticos. Os meus poemas não se situam no tempo linear. Existe neles uma temporalidade suspensa, elíptica, como se estivéssemos a ler um presente que já existiu, mas que poderá surgir de novo. A sua originalidade, a existir, não reside naquilo que dizem, mas, sobretudo, na forma como se pode escrever continuamente o inefável. Essa é a minha constante luta pela depuração da linguagem. Pegando no exemplo rural dos meus antepassados, os meus poemas nascem da intenção de lavrar o campo fértil da linguagem, humedecido pelas chuvas antigas da memória, da tradição, da filosofia. Colhendo palavras como se fossem raízes, ervas, fragmentos de pedra e de ossos. É o campo transformado em lugar de linguagem perpétua, fixando a memória do tempo, personificando o desejo como gesto metafísico, como ausência, como um história filtrada pelas ruínas, tudo a explodir num fluxo contínuo. O Poema Infinito é um texto que se escreve contra o fim, numa espécie de lume que arde sem conclusão. O que não tem explicação, explicado está. E o que é isso de arder sem conclusão?, perguntarão vocês. Bem, nesta espécie de escrita é “arder sem consumar-se”, é uma espécie de “sarça ardente”, uma espécie de chama que não se apaga porque não procura um fim, mas a busca permanente da intensidade. Em termos poéticos e existenciais, é manter-se em estado de combustão criativa ou afetiva, sem chegar ao esgotamento, nem à sua resolução. Arder sem conclusão significa manter os versos em suspensão, lineares, mas em suspensão, como se cada imagem prometesse algo que nunca se realiza totalmente, numa espécie de tensão contínua entre o que se diz e o que se cala. Significa também evitar a prisão do sentido, ou seja, não dar ao leitor um “fecho” narrativo, moral ou mesmo simbólico, mas deixá-lo em trânsito, em deslocamento constante. Significa ainda usar a linguagem como engrandecimento, não como ferramenta de explicação. As palavras brilham, colidem, criam zonas de luz e sombra, mas nunca um mapa completo. Significa, finalmente, recusar o ponto final como destino. O poema pode até terminar fisicamente, mas a sua energia é tal que o pensamento do leitor tem de continuar a inflamar-se até à última linha. Tem de viver na intensidade do inacabado. O poeta escreve como quem atravessa um incêndio, que é a linguagem. Por isso, O Poema Infinito não termina: ele tem de recomeçar sempre em quem o lê.
(Texto de João Madureira – Apresentação do livro “O Poema Infinito – Livro Segundo” – Chaves 23/10/2025)
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Não se podem culpar os deuses pelos pecados dos homens. A verdade não tem dono. Nem a terra os devia ter. Uma espécie de brilho molha o teu olhar. Tenho vontade de ficar a aquecer o amor na temperatura da tua pele. O teu corpo entre a timidez e o desejo. E a nudez a vesti-lo. E eu a lançar-me no abismo. Com as mãos postas no teu sexo mudo e aveludado. Depois seguem-se os calores e as tempestades. Aqui não há lugar aos orgasmos de esquecimento. É tudo em carne viva. Há no ato sexual um excesso de vulgaridade. A abstinência provoca ainda mais desejo. Por isso, o amor também tem as suas dificuldades. E as suas declinações verbais. E as suas insuficiências. Mas as brasas ainda continuam acesas, prontas a incendiarem-se se lhe soprarmos. Vista do lado de fora, toda a história de amor é igual. Mas lá dentro tudo é diferente. Os pormenores fazem as obras de arte. Assim se constrói aquilo que é sagrado. O meu amor não é premeditado, é meditado, rezado em orações profanas, que podem matar a alma mas dão vida aos corpos. O amor, a princípio, pode parecer uma maldição, mas é aquilo que acaba por nos salvar. Aquele que melhor nos sabe costuma ser, ao mesmo tempo, seco e aguado, doce e salgado. O amor é a quadratura do círculo. Por vezes, o amor usa uma máscara com a imagem da nossa própria cara. O amor também se consegue enganar a si próprio. O amor gosta de histórias de amor que não são histórias de amor. Eu não amo o amor. O verdadeiro amor não se deixa compreender. A fidelidade é uma espécie de felicidade invertida. É bonito espreitar para dentro de um decote e sentir alguma coisa. Dizem que o amor gosta de dançar na chuva, mas todos sabemos que quem anda à chuva molha-se. A egoesfera não é boa para orgasmos. Sobretudo os partilhados. As boas intenções estragam tudo. O amor rejeita-as. E o Freud a fazer-nos mais algumas desfeitas. O bom amor é herói à sua maneira. A leveza amorosa possui uma espécie de efeito irónico. Por vezes, é capaz de camuflar o desejo. E de distrair a busca irresponsável e intolerável da luxúria. Quando as pessoas me amam penso logo naquilo que fiz de errado. “Conseguiste. Conseguiste.” Disse o meu primeiro orgasmo para o meu pénis. E eu quase a chorar. Há esforços que valem a pena. Se a ereção não é pequena. Amor, amor, porque te atrapalhaste? Vou escrever-te um poema de boa fé porque, apesar de ser agnóstico, quero acreditar em ti. Amor. Leio poemas de amor de Shakespeare para acreditar no teatro. Ainda. Amor. Está na hora de aparecer o ilusionista. O amor é a sua obra cómica. A nossa obra icónica. O amor resiste mal aos monólogos demasiado longos. Por vezes, o amor quer desistir de ser amor. Para ser outra coisa qualquer. Cuidado com os amores perfeitos, pois costumam dar passos em falso. O problema é quando o amor, com fome, se transforma em gato e come o canário. A palavra amor provoca-me uma hipérbole melodramática, por isso me engasgo com ela. O amor deixa-nos vulneráveis. E isso é perigoso. Amores implodidos é o que mais há por aí. Quase sempre acabamos por comer o silêncio. Depois do amor. A ubiquidade do amor é uma coisa deslumbrante. Apesar de muito dele ser como um andor na Semana Santa. Cheio de pecado, redenção e salvação. Não, não, eu e o amor não somos amigos, apenas conhecidos. Muita lascívia também acaba por cansar. E o amor na corda bamba ente a compaixão e a hilaridade. A ironia é uma reserva de amor. Não é, Amor?
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