278 - Pérolas e diamantes: a concisão da insinceridade
Vendo a guerra de guerrilhas terrorista, bombista e malabarista a alastrar pelas cidades da Europa e a campanha contra o Daesh a alastrar no Médio Oriente, lembro-me de um provérbio Abecásio que diz: “Se a água se incendiar, como é que se pode apagar?”
Os abecásios e os georgianos tiveram uma guerra civil há bem pouco tempo, de contornos um pouco sinistros. A implosão da URSS continua a fazer tremer a terra com as suas réplicas.
A escola e a cultura da guerra está impregnada na matriz da humanidade. Na Abecásia, quando nasce um menino, os parentes oferecem-lhe um punhal de ouro. Ao lado do punhal penduram um chifre para o vinho.
Os abecásios bebem o vinho pelo corno, como se fosse um copo, por isso apenas o podem pousar na mesa depois de o engorgitarem até ao fim. É o alibi perfeito para a borracheira. Depois é só pegar no punhal. O ouro exige mais ouro. A guerra mais guerra. E a borracheira, nova borracheira.
Olga V., no livro O Fim do Homem Soviético – um tempo de desencanto, de Svetlana Aleksievitch, conta que um dia os georgianos e os abecásios bombardearam uma jaula de macacos. À noite, os georgianos perseguiram alguém pensando que era um abecásio. Quem mais poderia ser? Feriram-no. Ele gritava, como é natural. Por seu lado, alguns abecásios descobriraram-no e logo pensaram que era um georgiano. Quem mais poderia ser? Perseguiram-no, dispararam contra ele. Quando amanheceu viram que se tratava de um macaco ferido. Tanto abecásios como georgianos declararam uma trégua e foram salvar o macaco. “Se fosse um homem matavam-no… Eles andam como zombies. Acreditam que estão a praticar o bem. Mas será possível praticar o bem com uma metralhadora ou um punhal?”
Isto é Kusturica em estilo puro… e duro.
Então vamos lá encher de novo os chifres e beber. Vai a cima e vai abaixo, vai ao centro e bota baixo.
Por isso é que os homens e as mulheres para semente rareiam.
Na Rússia de Putin apareceram uns cartazes que foram muito além da imaginação ao poder do Maio de 68: “Vocês nem imaginam quem nós somos.” Ou este que traduz o bloqueio democrático da nossa sociedade: “Eu não votei nestes patifes, votei noutros patifes.”
É mesmo verdade, não existem revoluções de veludo. O campo de batalha é sempre ocupado pelos saqueadores.
Gritámos nas ruas que o povo é quem mais ordena. Qual o quê! Os comícios são espetáculos políticos baratos. O circo é bem mais interessante.
O povo nunca decide nada, são os indivíduos ilustres aqueles que dispõem as peças do xadrez político a seu belo prazer. Na partição do brinde, eles ficam constantemente com o bolo e a nós toca-nos sempre o buraco, que é ainda menos do que a fava do bolo-rei.
Não faz sentido mudar de governo se nós próprios não mudarmos.
A grande tese de Darwin não se baseia, como erradamente muitos pensam, na ideia de que são os mais fortes aqueles que triunfam. Darwin chegou à conclusão de que os vencedores da luta pela sobrevivência são os seres mais capazes de se adaptarem ao meio ambiente. São os medíocres aqueles que sobrevivem para perpetuarem a espécie.
O filólogo russo Sergei S. Averintsev disse que construímos as pontes sobre os rios da ignorância, mas que, entretanto, as torrentes mudaram o leito dos rios.
O futuro, por mais que nos custe a admitir, é absolutamente imprevisível.
Perguntaram um dia a Nabokov porque é que juntava os problemas de xadrez com os poemas. Respondeu que os problemas são a poesia do xadrez, pois exigem do compositor as mesmas virtudes que caraterizam toda a arte digna desse nome: originalidade, invenção, harmonia, concisão, complexidade e uma esplêndida insinceridade.
Para completar o ramalhete, eu acrescentar-lhe-ia a arte da política, desde logo pela sua admirável “insinceridade”.
O meu sonho foi idêntico ao do original escritor, pois sempre ambicionei vir a ter uma longa e excitante carreira como obscuro conservador de lepidópteros num grande museu.
Sei que falhei, mas foi por pouco. Mas as borboletas continuam aí à mão de semear.