292 - Pérolas e diamantes: o químico e o alquimista
Ao nível da informação em Portugal foi sempre difícil definir o que é o dito interesse público. Quase toda a gente confunde, ou quer confundir, o interesse público com o interesse do público. Cada um escolhe à vez o que lhe dá mais jeito no momento. Mas o que acaba sempre por se impor é o imperativo das audiências. E lá vai o interesse público às malvas. E também a quem é que isso importa?
Temos que convir que o equilíbrio nem sempre é fácil. Mesmo a televisão pública tem de ser feita com público.
Mas ao que assistimos, tanto nas estações públicas como privadas, é à conjugação dos seus próprios interesses com os interesses dos anunciantes.
Há uma lei muito citada no jornalismo, chamada de McLurg, relativa ao facto de a distância geográfica, logo emocional, condicionar o interesse do público, que diz o seguinte: Na imprensa, a morte de um inglês equivale à morte de 5 franceses, de 20 egípcios, de 500 indianos e de 1000 chineses.
Dou um exemplo que todos entenderão. A notícia dos acontecimentos de 12 de novembro de 1991 em Díli, onde foram massacradas 200 pessoas pelas autoridades de ocupação indonésia, com expressivas imagens de jovens refugiados na capela do cemitério a rezarem em português, teve um maior impacto e bem mais prolongado destaque em Portugal e nos países de língua portuguesa do que recebeu, três anos mais tarde, o massacre de um milhão de tutsis pelos hútus, no Ruanda.
Mas voltemos, com vossa licença, aos níveis de audiência e à mentalidade que os enforma.
Nos dias de hoje, o mercado é reconhecido como a instância autêntica de legitimação. Mas se olharmos para a história veremos que todas as produções culturais que todos reconhecemos como sendo as produções mais altas da humanidade, a literatura, a poesia, a filosofia e mesmo a matemática, todas elas foram produzidas contra a lógica do comércio.
Os entendidos nestes temas defendem que o serviço público deve implicar “complementaridade face aos difusores públicos”, promovendo a variedade da oferta e da promoção cultural local. Segundo um diretor de pesquisa da BBC, “a sensibilidade do público deve ser auscultada no exterior da própria lógica da medição de audiências”.
Como diz Bachelard, “todo o químico deve combater em si o alquimista”.
Francisco Rui Cádima, citado por Adelino Gomes, propõe que a RTP complemente a audiometria com uma espécie de “qualimetria” que permita ponderar “a apreciação dos telespectadores sobre a organização das grelhas, sobre os programas concretos e ainda sobre géneros e programas que habitualmente não estão nos melhores segmentos horários”.
À proliferação desmesurada de chavões como “mercado”, “custos”, “concorrência”, “consumidores”, “contribuintes”, devemos contrapor os conceitos democráticos e civilizacionais de “interesse público”, “qualidade”, “cultura”, “independência”, “cidadania”.
E convém não acreditar muito nos gestores da causa pública pois todos sabemos que as pessoas não fazem necessariamente o que dizem, nem dizem o que fazem.
Por alguma razão os autores do atentado das Torres Gémeas levaram a cabo o ataque numa hora em que o terror pôde ser transmitido em direto nos telejornais matutinos da América, nos telejornais da hora de almoço da Europa e nas notícias da noite na China. Como diz Vicente Verdú, “a aspiração máxima de uma notícia é a de ser como uma superprodução de Hollywood que atraia milhões de olhos.”
Afinal nós acreditamos mais na televisão do que na realidade.
Ignacio Ramonet, diretor do Le Monde Diplomatique, afirmou que nos anos 80 se verificou o auge da capacidade de absorção da informação. E questionou o seguinte: “Não teremos atingido uma fase em que o aumento da informação já não provoca aumento de liberdade? Mais preocupante ainda: Não estaremos a chegar a um mundo em que o aumento da informação provoca uma diminuição da liberdade, mais confusão, mais desinformação?”
Não se esqueçam das palavras de Ryszard Kapuscinsk: “De um modo geral, a conquista de cada bocadinho da nossa independência exige uma batalha”.