293 - Pérolas e diamantes: o pecado da salvação
Há dias assim. Hoje acordei com uma ideia fixa. Talvez porque tenha adormecido sem nenhuma dúvida, o que é raro, confesso.
Por causa do terrorismo árabe, lembrei-me das cruzadas, que eram encenações cuidadas e estreitamente identificadas com a renovação espiritual.
Esse processo estava especificamente relacionado com a pobreza voluntária e o aperfeiçoamento da vida.
No tempo da Terceira Cruzada, Alão de Lille, um pregador da cruz famoso na época, enfatizou o facto de a pobreza exaltada pelos missionários implicar humildade espiritual, não penúria económica. Para isso escolheu a versão do Sermão da Montanha em Mateus 5:3: “bem-aventurados os pobres de espírito” e não o mais socialmente radical de Lucas 6:20: “bem-aventurados sois vós, os pobres; pois vosso é o reino do Céu”.
De Mateus surgiu a moderna Opus Deis. De Lucas brotaram os Franciscanos.
Como todos sabemos, a reconquista da Terra Santa não foi deixada à metáfora. A ênfase reiterada na violência de Saladino exigia um tratamento de choque. As suas ondas ainda hoje se sentem. Para mal dos nossos pecados.
E é no pecado que vamos continuar. Pecadores somos nós todos. E quem não for que se atreva a atirar a primeira pedra.
É o atiras!
Foi em pecado que li a entrevista de José Rentes de Carvalho ao Expresso. E desde já confesso que o José é um pecador cativante e cheio de literatura dentro. A sua vida dava um filme. Para já resultou em alguns bons livros, cheios de humor e pequenos pecados veniais.
Podia relatar-vos uma sua aventura em Paris, que contou na LER, onde fala “numa maîtresse, muito procurada pela competência em dominar e ferir, inventiva no uso do cavalo-marinho, especialista de arriscadas técnicas do afogamento, orgulhosa de assim provocar ejaculações e orgasmos que faziam concorrência a um tal de Radko”, mas não, vou ficar-me pela entrevista mesmo.
A sua cruzada foi enorme.
Com 85 anos continua a calcorrear as estradas entre Portugal e a Holanda, cerca de 2200 km, todos os três meses. Sempre o mesmo caminho, as mesmas estradas, os mesmos hotéis.
Não escreve as suas memórias porque isso significa alindar, ou desculpar. Diz que não faz sentido.
Nasceu em Gaia. Nas traseiras da sua casa habitava uma espécie de lumpenproletariat, gente pitoresca e rude, carinhosa e também do mais cruel e feroz que se pode imaginar. Gente “que vivia na fronteira entre a humanidade e a animalidade”.
Foi o seu avô paterno que o ensinou a ler e a escrever, nos cadernos da alfândega. Ainda recorda a primeira frase que leu: “remessa de documentos para a sede”. São expressões destas que ditam um destino. Provavelmente inspirado por expressão tão vinculativa escreveu um conto intitulado Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia. Que deu título ao livro com o mesmo nome.
Fugiu de casa aos 17 anos e foi para Lisboa. Aos 19 anos, antes de ir para a tropa, insistiu na toleima. Alugou um quarto na Praça da Alegria. Não sabia que era uma casa habitada por espanholas do Parque Mayer. Foi o seu primeiro paraíso. E disso tirou proveito.
Fugiu à tropa e foi para Paris. Lá, com a ajuda de Novais Teixeira, aprendeu que a beleza da língua é essencial. Conheceu o realizador de cinema Buñuel e “uma mulher espalhafatosa, mas não muito inteligente, que dava pelo nome de Sophia Loren”. Andou também por Nova Iorque.
Acabou por se fixar na Holanda, onde foi professor universitário. Foi lá que começou a escrever. Iniciou-se com um livro que desancava os holandeses. Eles apreciaram, não porque sejam masoquistas, mas antes porque sabem que é com as críticas que se aprende. E de graça, que é outra coisa que consideram.
Estes amantes de tulipas pensam que se alguém diz mal deles, lá terá as suas razões, ou não. Se tiver, eles aproveitam e tentam corrigir-se. Se não tiver, esquecem e não ligam.
E terminou em duplo pecado, como não podia deixar de ser.
Na sua maneira de ver – pecadora, insisto, e quem não o for que lance a primeira pedra (é o lanças!) – as pessoas não se dão conta de que andam nuas por aí, mesmo por detrás daquela máscara que exibem, para corresponderem ao que delas se espera. Na maioria dos casos são tão previsíveis que até dói.
E costuma, todas as semanas, cometer o desmesurado pecado da gula, em Torre de Moncorvo, sempre sentado à mesa do mesmo restaurante, bem em frente a uma travessa de feijoada à D. Dinis.
Que Deus o ajude e a mim não me desampare.