310 - Pérolas e diamantes: detalhes alternativos
Para mal dos nossos pecados, ainda teimamos em viver nesta dicotomia entre esquerda e direita.
Por agora, a direita liberal diz-se alternativa à direita alternativa e até à esquerda clássica. E a esquerda clássica, e informal, por seu lado, afirma-se alternativa à direita alternativa e à esquerda alternativa clássica.
Sendo que a direita alternativa é hoje alternativa à antiga direita alternativa, ou não, e à esquerda lato senso, ou quase. E a esquerda alternativa é alternativa à esquerda super híper alternativa, ou não, e à direita senso lato, ou talvez sim. Ou sopas.
Claro que esta alternativa toda, ou toda esta alternativa, mais não é do que um exercício útil, ou inútil, na sua própria preguiça.
E tudo isto resulta da velha leitura apócrifa do novo evangelho sobre o velho testamento e da nova leitura interpolada do novo testamento sobre o velho evangelho.
Mas todos sabemos que é do novo caos que nasce a velha ordem. E também que é da nova ordem que ressuscita o velho caos. Deus habita, e hesita, entre os detalhes alternativos. Ou não.
Entretanto, os consumidores normais de direita e de esquerda dedicam as suas vidas a comprar e a gastar, e os consumidores liberais da esquerda e da direita alternativas, ouvem nos iPods, ou nos concertos que frequentam, a sua world music e mastigam delicadamente a sua comida biológica.
Mas uma coisa nos deve preocupar, como preocupou Charles Fourier [(1772-1837), considerado por Marx e Engels um dos pais do socialismo crítico-utópico], que encontrei por puro acaso na deliciosa leitura de Michel Houellebecq.
Para o filósofo francês, a grande questão social estava relacionada com a organização da produção.
Houellebecq, pela voz de uma das suas personagens de O mapa e o território, considera-o um guru, não um pensador, daí o seu êxito lhe vir, não da adesão intelectual a uma teoria, mas antes da incompreensão geral, associada a um inalterável otimismo, em especial no plano sexual.
As pessoas necessitam incrivelmente de otimismo sexual, pensa a tal personagem do escritor francês.
A grande questão para o intelectual francês é esta: porque é que o homem trabalha? Qual a razão de ele ocupar um determinado lugar na organização social e aceitar lá estar e cumprir a sua tarefa?
Os liberais pensavam, e continuam a pensar, que é pura e simplesmente pela ilusão do lucro. Mas é bem provável que a resposta seja insuficiente.
Por seu lado, os marxistas-leninistas nem sequer se interessaram pelo assunto. Daí o comunismo ter fracassado. E a explicação é bem simples: mal suprimiram o ferrão financeiro, as pessoas deixaram de trabalhar, limitaram-se a sabotar a sua tarefa. O absentismo passou a ser enorme.
Todos hoje sabemos que as sociedades ditas comunistas foram incapazes de assegurar a produção e a distribuição dos bens elementares. Uma sociedade incapaz de produzir, por exemplo papel higiénico e sabão, está condenada ao fracasso.
Fourier conheceu o Ancien Régime. Sabia que muito antes do aparecimento do capitalismo já haviam tido lugar pesquisas científicas, progressos técnicos e que existiam pessoas que trabalhavam duramente, por vezes muito duramente, sem serem impelidas pelo ardil do lucro, mas antes por uma coisa bem mais vaga aos olhos dos homens práticos: o amor a Deus, no caso dos monges, ou, no nosso caso, a honra da função.
Nos tempos que correm todos queremos ser artistas, políticos ou homens de negócios. Por isso é que outra personagem de O mapa e o território canta a plenos pulmões, com um copo de vodka a tremer-lhe nas mãos, numa das tais vernissages do people que frequenta estas liturgias: “Gostava de ser artiiiista / Para o mundo recriar / Poder ser um anarquiiiista / E de barriga pró ar!”