311 - Pérolas e diamantes: a brincadeira e o brinquedo
A vida anda sempre entre o humor e a tragédia, entre a violência e o desejo, entre a virtude e a tristeza. Por vezes acaba numa luta entre a política e a literatura. Ou vice-versa.
Há quem defenda que ao escritor deve competir a arte da frase, ao leitor cabe-lhe dominar a arte de a ler.
Mas a mim continua a seduzir-me a arte amorosa da política. Afinal quais foram os regimes políticos que, no século XX, legitimaram o seu imenso poder invocando o amor do povo ao seu guia? Foram os regimes totalitários.
Kim Yong-Il, o radioso guia norte-coreano, escreveu mesmo um poema realçando essa perspetiva: “Tal como o girassol só pode prosperar voltado para o sol, o povo coreano só pode prosperar levantando os olhos e voltando-os para o seu Guia”.
E o amor também nos diz que não devemos recear aprender com os nossos inimigos para amarmos ainda mais o nosso povo.
Mao, depois de se encontrar com Nixon e Kissinger, disse a quem o quis ouvir: “Gosto de negociar com pessoas de direita. Dizem o que pensam realmente – não são como as pessoas de esquerda que dizem uma coisa e querem dizer outra.” Há neste desabafo uma verdade profunda. A lição de Mao tornou-se ainda mais pertinente nos dias de hoje do que o foi na altura.
De facto podemos aprender muito mais com os conservadores inteligentes e críticos, os que Zizek apelida de não reacionários, do que com os progressistas liberais. Ainda segundo este mesmo filósofo, estes últimos tendem a anular as “contradições” inerentes à ordem existente, que os primeiros se dispõem a reconhecer irresolúvel.
Segundo Daniel Bell, o progresso do capitalismo, que tem por sustentáculo a ideologia consumista, está a minar pouco a pouco a chamada ética protestante, que tornou o capitalismo possível. O capitalismo hoje funciona cada vez mais como a “institucionalização da inveja”.
No fundo, os progressistas de pacotilha, mais uma vez citando Mao (de facto o veneno combate-se com o próprio veneno), “só levantam o rochedo para o deixarem cair em cima dos pés”.
A nós toca-nos fazer real o mito de Sísifo, condenados a repetir sempre a mesma tarefa de empurrar a pedra até o cume da montanha, sendo que, de cada vez que estamos a alcançar o topo, a pedra cai-nos das mãos e rola novamente pela montanha abaixo até o ponto de partida, invalidando completamente o duro esforço despendido no seu transporte.
Parece que vivemos no fim dos tempos. Até importamos o tantra da cultura hindu. Nele encontra-se, segundo Slavoj Zizek, «a lógica espiritual do capitalismo tardio», “reunindo a espiritualidade e os prazeres terrenos, a transcendência e os benefícios materiais, a experiência divina e o shopping ilimitado. Propaga a transgressão permanente de todas as regras, a violação de todos os tabus, a satisfação instantânea como via de iluminação; supera o antiquado pensamento «binário», o dualismo do espírito e do corpo, afirmando que o corpo na sua realidade mais material (localização do sexo e do prazer) é a vida real a despertar do espírito. A felicidade resulta do «dizer sim» a todas as necessidades corporais, e não da sua negação: a perfeição espiritual resulta da intuição de que já somos divinos e perfeitos, e não é qualquer coisa que tenhamos de conseguir através do esforço e da disciplina.”
Não sei se foi deste caldo de cultura que nasceu a ideia peregrina de atribuir o Nobel da Literatura a Bob Dylan.
Devemos sempre desconfiar dos iluminados do costume que se julgam ser a única fonte da verdade. Acontece que a verdade é sempre outra.
Tudo isto parece por vezes a nossa casa tão cheia de luz mas esvaziada por essa mesma luz. Clarice Lispector bem nos avisou: Às vezes começa-se a brincar com os pensamentos e, inesperadamente, é o brinquedo que começa a brincar connosco.