A língua e a pena
“Questionais-me sobre a minha recusa em vos receber, garantindo que aceitaríeis ouvir-me sem interrupções. Contudo, se prefiro escrever em vez de falar, é por ser a língua a voz da emoção e a pena a voz da razão. Nos últimos anos, nunca permiti que a emoção me suplantasse a razão, aprendendo a meter as palavras numa balança antes de as proferir pela minha boca, que se abria com parcimónia. Escolho a escrita agora por mor do meu presente estado. Deste modo, pela escrita, a minha língua se encontra encarcerada e as minhas mãos lhe tomam o lugar, amaciando as emoções.
No convívio agrada-nos usar a língua, mas ela é porventura a mais perigosa arma concedida por Deus aos homens, e manejá-la com a emoção é labor fatal para o seu dono e para os demais. Tantas vezes a língua quebra os ossos mais que a marreta, dispersa povos, destrói cidades e arrasa até as casas dos poderosos. É ela a porta dos nossos sentidos, e se for escancarada permite que nos olhem por dentro, nos vasculhem a alma, nos roubem a vida. A língua solta é, enfim, a causa da maior parte das desgraças humanas. Pela sua imprudência, muito depressa se perde por descuido o que com muito trabalho e dificuldade se ganhou com o silêncio.”
A Mão Esquerda de Deus – Pedro Almeida Vieira – Publicações Dom Quixote