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Jul06
Do destino dos papagaios pornográficos
João Madureira
Junto ao canto estava um papagaio. Junto ao papagaio estava um vaso. Junto ao vaso estava outro. O papagaio estava numa gaiola a rasgar folhas de jornal com o bico. Estava triste o papagaio.
Noutro local também lá estava um papagaio dentro duma gaiola. Este não rasgava folhas de jornal, limitava-se a olhar para quem passava como quem esbulha sementes com o bico. Estava triste o segundo papagaio.
Numa praça estavam vários marroquinos a vender ventoinhas, cintos, perfumes e, também, filmes pornográficos piratas a homens de meia-idade.
Estavam tristes os marroquinos e tristes também estavam os homens de meia-idade que compravam filmes pornográficos piratas aos marroquinos.
Mais a sul vários emigrantes apanhavam sombra junto ao rio sentados em cadeiras de plástico, comendo tremoços, amendoins e bebendo cerveja fresca.
Estavam também tristes os emigrantes, estavam tristes os tremoços, estava triste a cerveja e as cadeiras de plástico e os amendoins. Estava triste a relva e os pássaros e, até, o verde das árvores das margens. Estavam tristes as margens. As duas.
No rio pedalavam turistas nas gaivotas enquanto deslizavam nas águas turvas do Tâmega.
Estavam tristes os turistas, estavam tristes as gaivotas, estava triste o rio, estava triste a tarde.
Na varanda duma rua estreita uma mulher gritou que já não conseguia aguentar mais a monotonia semântica das molas da roupa. Estava triste a mulher. Estava triste a varanda. Estavam tristes as molas e a roupa e a monotonia também estava triste, de uma tristeza redundante, rígida, hiperbólica. Triste também ficou o grito da mulher.
Mas de nada lhe valeu.
O grito extinguiu-se sem destino.
Os gritos não têm destino.