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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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21
Ago17

355 - Pérolas e diamantes: A fé na palavra imortal

João Madureira

 

 

O objetivo dos artistas romanos era imortalizar a pessoa em estátuas de bronze ou mármore, para dessa forma “não permitir que as feições humanas fossem esquecidas ou que o pó dos séculos prevalecesse sobre o homem”. O grande objetivo da escultura romana era o de celebrar o indivíduo em toda a aceção da palavra: tornar público, honrar e preservar.

 

Já os gregos eram os novos artífices da retórica e da prosa literária. Isócrates definiu um humanismo grego, uma cultura da língua falada e escrita. Escreveu: “As pessoas a quem chamamos gregos são aquelas que partilham, não o nosso sangue, mas a nossa cultura.” Essa cultura foi essencialmente uma realização de Atenas, que ele, tal como Tucídides, viam como “a escola da Grécia”. Foi a palavra grega, projetada na arte nascente da prosa, que constituiu uma nova força para estabelecer a unidade helénica.

 

Os gregos acreditavam que “as palavras verdadeiras, as palavras em conformidade com a lei e a justiça, os reflexos de uma alma boa e digna de confiança”, iriam construir uma comunidade ainda mais vasta.

 

Todos sabemos agora que a cultura ocidental, a educação que civilizou o Ocidente, se fundamentou nessa fé na palavra imortal.

 

E os cultores dessa arte passaram a ser admirados e até mesmo apaparicados por reis e papas.

 

Chaucer, por volta de 1366, chegou a conhecer Boccaccio e, numa viagem a Itália, chegou a adquirir os livros de Petrarca e a Divina Comédia de Dante.

 

Eduardo III manteve-o ao seu serviço durante muito tempo e, pelos serviços prestados, chegou mesmo a conceder-lhe um jarro de vinho por dia até à sua morte.

 

Mas até as melhores histórias terminam de forma trágica.

 

Quixote é vencido pelo Cavaleiro da Lua Branca, que o faz cair do cavalo durante a luta, e este pede-lhe: “Leva a tua lança para casa, ó Cavaleiro da Lua Branca, e leva a minha vida, uma vez que já me roubaste a minha honra.”

 

O Cavaleiro vencedor recusa e apenas exige que “o grande D. Quixote” se retire para a sua aldeia durante um ano.

 

Quixote, regressando à sanidade, e ao deixar Barcelona, o local da sua contenda, olha para trás e diz: “Aqui era Troia; aqui a minha sorte, e não a minha cobardia, roubou-me a glória que ganhara; aqui a fortuna aplicou sobre mim as suas fantasias e caprichos; aqui as minhas proezas foram obscurecidas; e aqui, finalmente, a minha estrela pôs-se para não mais nascer.”

 

Já o seu anafado escudeiro, ao aproximar-se da aldeia, põe-se de joelhos e diz: “Abre os olhos, amada terra natal, e contempla o teu filho, Sancho Pança, que para ti regressa. Se não volta rico, volta pelo menos bem derrotado. Abre os braços e recebe também o teu outro filho, D. Quixote, que regressa vencido pelo braço de outro, mas vitorioso sobre si próprio, e isto, disseram-me, é a maior vitória que se pode desejar.”

 

Mas D. Quixote, o engenhoso cavaleiro-fidalgo, não consegue sobreviver por muito tempo à vida pastoril. Com a sanidade recuperada, e com a desilusão que daí lhe advém, vem a doença. Por isso avisa os incautos: “Tenho notícias para vós, gentil senhor. Já não sou D. Quixote de La Mancha, mas Alonso Quijano.”

 

Todos sabemos que depois de termos sido heróis já nunca conseguimos regressar à condição de simples mortais.

 

À beira da morte, o cavaleiro da triste figura, o herói que mais prezo e admiro, vira-se para Sancho e diz: “Perdoa-me, amigo, por ter feito com que parecesses tão louco como eu ao levar-te a cair no mesmo erro, o de acreditar que ainda há cavaleiros andantes neste mundo.”

 

Ao que Sancho responde a chorar (e eu também, confesso-o de lágrimas nos olhos): “Ah, senhor, não morra, e em vez disso aceite o meu conselho e continue a viver durante muitos anos, pois a maior loucura de que um homem pode ser culpado nesta vida é a de morrer sem uma boa razão, sem que ninguém o mate, assassinado apenas pelas mãos da melancolia.”

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