19
Jul06
Debaixo da noite
João Madureira
Debaixo da noite está o silêncio das portas e debaixo dele ainda estão os gritos das cadeiras e o gemer das pedras e o murmurar dos interstícios das paredes e o olhar das gárgulas e o piar das corujas e o desabafar das ameias dos castelos de montanha e o rumorejar das escadas e das portas e o destino das árvores e o cenáculo das oliveiras e a desfaçatez dos aloendros e a suposição dos carvalhos e das urzes e o bulir profundo das ervas e o rastejar das cobras e o bulício dos insectos e dos olhares das cigarras e a metamorfose dos lírios e a insipidez dos bonsais nas estufas e o florir extemporâneo das rosas e dos cravos e dos nenúfares e o rezar dos elefantes e o implorar dos desviados e a liturgia dos infelizes e dos indistintos e o andar dos lobos e o uivar dos cães e o miar dos gatos e a inteira lucidez dos crentes e a sabedoria dos agnósticos e os segredos dos príncipes e a cegueira dos poderosos e a sabedoria dos inocentes e a incoerência dos bem-aventurados e as dúvidas dos sábios e a dicotomia dos sérios e o riso dos tontos e o choro dos aprendizes e a consciência dos incautos e a satisfação dos inocentes e a inocência dos pecadores e a lucidez dos opressores e a infelicidade dos amantes e a ditosa pátria dos apátridas e a reflexão dos artífices e o compulsão dos eremitas e a imensa lógica do espaço e a infinita dimensão de tudo e de nada e a interminável sucessão dos dias e das noites e de tudo o que existe.
Ámen.