394 - Pérolas e Diamantes: O Professor Gaivota
Sabem quem é o Professor Gaivota? É um homenzinho jovial e emaciado chamado Joe Gould que se tornou uma personagem conhecida nas cafetarias, bares e tascas de Greenwich Village, ao longo de 25 anos. Gabava-se, dizem que a contragosto, de ser o último dos boémios, pois todos os outros tinham ficado pelo caminho, “uns debaixo de terra, outros no manicómio e outros na publicidade”.
Freeman escreveu um comentário na Newsstand onde nos dá conta que até esse momento nunca tinha lido nada de Joe Gould, mas, no entanto, para ele continuava a ser um dos escritores americanos mais genuínos e originais. Tudo o que então se escrevia na América procurava encaixar-se numa forma ou noutra. Apenas ele parecia ter suficiente imaginação para compreender que quando se chega a tal ponto a forma não faz falta nenhuma. “Não era preciso que o que se tinha a dizer o fosse em forma de poema, de ensaio, de conto ou de romance. Era preciso dizê-lo e mais nada.”
Gould sempre se sentiu perplexo com a sua personalidade. A História Oral inclui alguns textos autobiográficos, que dizem ser outras tantas tentativas de se explicar a si próprio. Num deles, intitulado “Porque Sou Incapaz de Me Adaptar À Civilização tal como Ela É, ou Faz, Faz, Não Faças, O Raio de Uma Nota”, chegou à conclusão de que a sua timidez era a responsável de tudo. “Sou introvertido e extrovertido, numa só pessoa”, escreveu ele.
Era, além disso, tal como o meu tio Esgaça, extraordinariamente sensível ao álcool. Numa noite de calor, contou ele a Joseph Mitchell, o autor da crónica de que vos falo, publicada na The New Yorker, bastava-lhe andar uns dez minutos de um lado para o outro diante de um bar a respirar bem fundo para ficar com os copos.
Nos bares, onde por vezes tinha a ousadia de aparecer, se avistava um candidato a pagante, dirigia-se a ele e dizia-lhe: “O meu nome é Joseph Ferdinand Gould, formado em Harvard, magna cum difficultate, curso de 1911, e presidente do Conselho de Administração de Boa & Má Sorte, SARL. Em troca de uma bebida, posso recitar-lhe um poema, fazer um discurso, defender uma tese ou tirar os sapatos e imitar uma gaivota. Prefiro gin, mas uma cerveja também serve.”
Depois era vê-lo a tirar os sapatos e as meias, esticar o pescoço e lançar-se pela sala aos saltinhos, batendo os braços e soltando um grasnido penetrante a cada salto.
Isto tudo porque em criança teve várias gaivotas domesticadas. Já adulto, passava muitos domingos no molhe de pesca de Sheepshead Bay a observar as gaivotas, pois gostava de se gabar de que as compreendia a tal ponto que podia traduzir poemas em grasnidos de gaivota. “Já traduzi para gaivotês uma série de poemas de Henry Wadsworth Longfellow”, dizia ele sem se rir.
Na sua juventude decidiu trabalhar para uma organização financiada pelo Instituto Carnegie, dedicada, na altura, ao estudo de famílias de deficientes hereditários, indigentes e outras chagas urbanas. Por ser, na sua opinião, gente demasiado prosaica para o seu gosto, decidiu especializar-se em índios. Nesse inverno foi para o Dakota do Norte e começou a medir as cabeças de um milhar de chipewas e de quinhentos mandans, nas respetivas reservas.
Mais tarde, quando lhe perguntavam porque andou a fazer tais medições, mudava de assunto e dizia que era um “segredo científico absoluto”.
Esse foi o período mais gratificante da sua vida. Montava bem a cavalo, gostava de dançar e da algazarra. Os índios davam-se bem com ele. Tinha apenas medo de que o achassem chalado quando lhes perguntava se podia “medir-lhes a tola”. Mas eles não se importavam. Parece que até lhe achavam piada.
Gostava de rematar: “Os índios são os únicos verdadeiros aristocratas que eu conheci. Eles é que deviam governar o país, e a nós deviam meter-nos nas reservas.”
Numa manhã de 1917, ainda como ajudante de repórter na esquadra central da polícia para o Evening Mail, estando ele a preguiçar nas escadas das traseiras, às voltas com a ressaca da véspera, brotou-lhe na ideia a História Oral. Abandonou imediatamente o emprego e começou a escrever.
Nos momentos de exaltação costumava dizer que, desde essa manhã fatídica, a História Oral passou a ser a “minha corda e o meu cadafalso, a minha cama e a minha escrivaninha, a minha mulher e a minha amásia, a minha ferida e o sal em cima dela, o meu whiskey e a minha aspirina, o meu refúgio e a minha salvação. É a única coisa que ainda tem alguma importância para mim. Tudo o resto é lixo.”
Chegou a receber uma pequena herança, cerca de mil dólares. Gastou-os em menos de um mês, a pagar copos à toa por toda a Village a pessoas que nunca vira. “Parecia um infeliz quando tinha dinheiro no bolso”, diziam os seus amigos. “Quando ficou sem nada, parecia que lhe tinham tirado um peso de cima.”
Na altura em que andava a esbanjar a herança, fez uma coisa que lhe deu grande satisfação. Comprou um rádio enorme, todo brilhante, levou-o para a Sixth Avenue e desfê-lo aos pontapés.
Nalgumas festas, segundo o Sr. McCrudden, organizador das “Noites de Poesia Religiosa”, insistia em ler uns poemas absurdos, escritos por ele, que faziam perder a cabeça aos presentes. Gould ia lá porque costumavam servir vinho nas sessões. Um dia pediu autorização para recitar um poema que tinha escrito intitulado “A Minha Religião”. Disseram-lhe que sim, e o que ele recitou foi: No inverno sou budista, / E no verão sou nudista.
Por vezes, andando para trás e para diante, dava um pulo mais um saltinho e dizia a quem passava: “Quer saber o que Joe Gould pensa do mundo e de tudo o que nele existe? Scriiic, scriiic, scriiic!”