402 - Pérolas e diamantes: A sustentabilidade da imbecilidade
Tal como Niall Fergunson, do The New York Times, também eu não consigo ler no ecrã de um computador com prazer. Para isso tenho de ter um livro impresso com papel e tinta, “de preferência um robusto paperback”.
Tal como James Ellroy, penso que é a ler que se aprende a escrever. “Mas, na realidade, não posso dizer como é que eu aprendi.” Ellroy acha que foi Deus quem lhe deu esse dom, pois chegou-lhe de forma misteriosa a partir dos livros que leu. A mim foi mesmo o Diabo em figura de gente.
Mas o mundo literário, apesar do seu brilho exterior de civilidade, é um lugar estupidamente convencional, cheio de egos incomensuráveis.
Mesmo assim, a realidade está sempre a superar a ficção. Como escreveu Philip Roth, “ninguém podia imaginar que o grande desastre americano do século XXI não seria um ‘Big Brother’ orwelliano, mas a figura ridícula e sinistra do bobo arrogante da commedia dell’arte”.
Na carta do editor do último número da revista LER, Francisco José Viegas refere que os dados disponíveis no Eurostat (2011) informam que apenas 5,2% da população portuguesa lê mais de 10 livros por ano, que é metade da percentagem da taxa da Espanha (11%) e muito menos do que a Estónia (21,9%), a Alemanha (22,1%), ou a Finlândia (24,4%). Há ainda 9 % de portugueses que leem entre 5 a 9 livros por ano.
Sigamos então o bom exemplo do Presidente da República e procuremos aquilo em que somos mesmo bons: a única contabilidade em que Portugal fica no topo é na honrosa categoria “não leu um livro”, em que nos classificamos no segundo lugar – entre os países da UE, apenas a Roménia nos bate.
FJV tem razão, a crescente desvalorização da literatura no ensino do português é cada vez mais evidente. Proliferam por aí os textos em “português normal”, o que, a curto prazo, contribuirá para a banalização da literatura, agora mais conhecida por “entretenimento”, onde se misturam o bom e o mau em doses idênticas, desde que apresentem as denominadas “dimensão cultural” e “festiva”.
FJV propõe que se avalie a qualidade do ensino relacionado com a leitura, para ver até que ponto ela reflete e amplia a crescente banalização do banal.
Fala-nos a seguir de uma sua participação num encontro relacionado com bibliotecas escolares, onde ouviu as costumeiras cantilenas. Primeira: que o digital providencia um “absolutamente notável” progresso da civilização, e que esse progresso é inquestionável. Segunda: que é necessário transformar a leitura numa “atividade inclusiva”, provavelmente banindo “livros difíceis” e “incluindo cada vez mais literatura popular que diga alguma coisa às pessoas”. Terceira, em jeito de lamento: a vida é como é.
De facto, “o lero-lero da ‘inclusividade’ e da ‘leitura inclusiva’ não é mais do que uma desculpa para perpetuar essa banalização do banal nas nossas escolas”.
E termina com duas questões pertinentes: quantos livros leem os jovens das escolas secundárias portuguesas por ano? Quantos livros leem os professores de Português por ano?
A festejada atriz Beatriz Batarda já deu o mote, quando afirmou: “Não gosto de Gil Vicente. Desprezo Shakespeare.” Pois lá bem diz o povo: o comer e o coçar está no começar.
Alguns, os tais do politicamente correto, já falam de uma literatura sustentável. O que até originou que um livro que denuncia o racismo seja considerado perigoso porque usa palavras racistas.
Numa escola americana do Mississípi, a leitura de Não matem a Cotovia, de Harper Lee, apenas pode ser feita com uma autorização expressa dos pais, uma vez que nele se usa a palavra “nigger”. Os bem-pensantes consideram que essa expressão racista, bem como muita da linguagem da obra, pode incomodar as almas sensíveis das crianças, que, tal como nós, abominam o racismo. Já não basta afirmar que o livro de Harper Lee é uma denúncia amarga do racismo, torna-se necessário fazê-lo de forma apropriada e “sustentável”. Ó raio de palavra. Ó c. de gente.
Na Califórnia corre um folheto, exarado pelo Departamento de Educação do Estado, que recomenda aos pais que tenham em atenção a cor do cabelo dos bonecos, a forma como se vestem, se utilizam sotaques regionais, se os meninos brincam com carros, se as meninas se vestem com cores suaves, se as personagens das “minorias” desempenham papéis secundários, se eventuais diferenças de classe social são ou não nomeadas como injustiças, se existem diálogos que fazem prever comportamentos transfóbicos, se a opinião subjetiva do autor parece racista ou sexista ou outra coisa qualquer.
A ideia parece ser a de que os pais, os editores, os jornalistas, os bibliotecários e os professores passem a fazer de Santa Inquisição, passando todos os livros a pente fino e, muito provavelmente, queimem em público os maus exemplos. Pelo caminho que isto leva, e com a nossa irremediável tendência para seguir orientações estrangeiras, não tarda nada a que idêntica lei seja aplicada em Portugal. O mundo está a ficar cada vez mais estúpido.
Como se isso ainda fosse pouco, uma mãe inglesa, ou melhor, uma mãe de Bragança que vive na capital britânica, pediu para que o filme Branca de Neve e os Sete Anões não fosse mostrado ao seu filho de seis anos, iniciando mesmo uma petição pública para que a proibição se estendesse por muito tempo, porque, na sua douta interpretação, o momento em que o príncipe desperta Branca de Neve com um beijo configura uma situação de “abuso sexual”. Esta púdica e inocente mamã não quer que o seu jovem rebento fique com a ideia distorcida de que as raparigas podem ser beijadas enquanto dormem. Mesmo que seja por um angélico príncipe à moda antiga.
Propostas: Música: Bundle - Soft Machine; Leitura: Babbit de Sinclair Lewis; Viagens: http://www.destinosvividos.com/douro-vinhateiro-roteiro-miradouros-percursos-pedestres/; Restaurante: Pensão Flávia – Chaves.