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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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17
Set18

409 - Pérolas e Diamantes: É só inquietação, inquietação...

João Madureira

 

 

A propósito do seu álbum de “Inéditos 1967-1999”, editado recentemente, José Mário Branco confessou ao Jornal de Negócios que quando tinha quatro anos, foram dar com ele a chorar, agarrado ao rádio. Perguntaram-lhe: “O que é que tu tens, Zé Mário?” Estava a tocar um minueto do célebre violoncelista Boccherini. Respondeu: “Eu quero tocar ’ito.”

 

José Mário Branco é um dos grandes compositores musicais portugueses. Ou seja, pode não tocar Boccherini, mas chegou longe. Coisa de génios.

 

Também eu, quando tinha quatro anos, em frente ao rádio Siera lá de casa, situada na rua Presidente Arriaga, em Lisboa, me punha a dançar quando passavam as músicas da moda. Dizia a minha mãe que eu até bailava bem.

 

Em noites de jantarada, muitos dos convidados, seduzidos pelos balanços da criança, davam-lhe dinheiro para os brinquedos e para as guloseimas. Hoje nem sequer me atrevo a dar um pé de dança nas festas familiares. Coisas dos medíocres.

 

De facto, cada um é para o que nasce.

 

Fora as devidas distâncias, alguma coisa temos em comum. Também eu me convenci que tinha nascido numa geração com a noção de que podia mudar o mundo. Ou melhor, com a noção de que era necessário mudar o mundo.

 

Na minha juventude era normal saltar de projeto para projeto, de ideologia para ideologia,  de radicalidade para radicalidade.

 

Quando se deu em o 25 de Abril eu era católico praticante, mas, em poucos meses, saltei para PC, por ser o sítio onde se podiam fazer coisas com um mínimo de organização e consistência. Apesar da adesão intempestiva ao marxismo-leninismo, que é uma filosofia política muito aborrecida e cheia de contradições, a história de Jesus nunca me abandonou. Continuo a achar que existe uma contradição profunda entre a história de Cristo e a instituição Igreja. Concordo com José Mário Branco quando ele diz que a história desse homem é uma das mais belas histórias, senão a mais bela, que a humanidade inventou.

 

Esse homem calmo e pacífico enfrentou com o seu exemplo e a palavra os dois grandes poderes (o judaico e o romano)  na terra onde nasceu, cresceu e morreu com apenas 33 anos. Foi ele que disse uma das coisas mais subversivas de sempre: “Deus és tu”, como quem declara: “Essa gente que diz que é dona de Deus, e que vive e domina a sociedade à custa disso, não serve para nada, está a perverter.”

 

A sua temporalidade é admirável.

 

Se nos situarmos na época, e até podendo relativizar o ponto de vista histórico e místico, o que aquele homem fez pela dignidade do ser humano é de facto notável.

 

Alérgico a partidarite, José Mário Branco saiu do Bloco de Esquerda, partido que ajudou a fundar. Disse na sua intervenção uma coisa com a qual me identifico plenamente: “Eu nunca saí de partido nenhum, os partidos é que saíram de mim.”

 

Nos partidos não se está para procurar realizar os valores da justiça da liberdade, está-se lá para “outras jogadas”. Por isso não se revê em nenhum partido. Nem ele, nem eu.

 

Considera que o mundo está muito feio. Tal como ele, também eu cresci num sistema em que havia opressão física, em que se a pessoa não cumprisse as regras arriscava-se a castigos físicos, à pancada, à prisão e à tortura, coisa que ele experimentou.

 

Agora a música é outra. José Mário Branco considera que o desenvolvimento da sociedade e do sistema em que vivemos é tal que, globalmente falando, a ditadura foi transportada para dentro do cérebro das pessoas por processos de massificação e atomização. Cada ser humano está sozinho. Há um processo de desculturação. Quanto menos souberes, melhor, quanto mais tiveres uma mente padronizada e reduzida a um único modelo, melhor. Portanto, “há uma capacidade incrível de recuperação da contestação”.

 

José Mário Branco viveu o Maio de 68 em França. Estava lá imigrado.

 

Nessa data memorável, houve uma catarse libertária lindíssima, que foi logo boicotada pelo PCF a troco de um aumento de salários de 10% nos acordos com Pompidou. O movimento reivindicativo durou um mês, com 2 milhões de operários em greve, com ocupações. Mas rapidamente se esboroou. Passados poucos meses desse aumento salarial, o custo de vida já tinha aumentado 12%. O saldo foi, portanto, negativo.

 

Entendamo-nos, o Maio de 68 não foi projeto de coisa alguma. Resumiu-se a um espetáculo libertário, a um ato de vida. A um grito.

 

“Debaixo do asfalto cresce a erva”. Foi bom enquanto durou.

 

José Mário Branco conta um facto a que assistiu e que define na perfeição o Maio de 68.

 

Ia no seu Fiat 600, subindo Le Boulevard Saint- Michel, quando avistou um grupo de 30 a 40 pessoas, desde o estudante anarquista e cabeludo, até ao senhor de gravata, passando pelas donas de casa com os sacos das compras, ou, ainda, os operários de fato-macaco, padres, novos, velhos e gente de meia idade.  Resolveu parar e perguntou, como quem se alivia: “Há algum problema? Ao que alguém respondeu: “Não, não. Estamos a discutir o que é ser feliz.” Isto para ele, e também para mim, define o Maio de 68. As pessoas divertiam-se a discutir umas com as outras.

 

Isto da revolução é como o Mito de Sísifo. Quando se está a atingir o topo da montanha, o penedo cai e volta a rolar montanha abaixo.

 

É, também, o paradigma da Esquerda, das ideias da fraternidade, da igualdade e da liberdade. Quando se está a conseguir esse objetivo, lá cai o rebo ao chão e toca a rolar até ao sopé da montanha. E lá volta o coitado do Sísifo a pegar no penedo e a subir a encosta.

 

Claro que também há algo de novo e que bate muito forte: a tal desculturação. Hoje já não há referências, não há contacto com os livros, com os livros de História. Hoje tudo se resume aos jogos informáticos. Até o poder.

 

Propostas: Música: Com Todo El Mundo – Khruangbin; Leitura: Pedro Páramo – Juan Rulfo; Viagens: http://www.destinosvividos.com/visitar-peneda-geres-ermida/; Restaurante: Zé Bota – Porto.

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