24
Jun06
Mudar de passeio
João Madureira
O José não gosta nada de mudar de passeio.
Diz que tem medo de atravessar a rua. Que lhe destabiliza o sistema nervoso e lhe mexe com a libido.
Ele tem a libido um pouco estragada. Coisas da juventude.
O José foi à guerra e quem vai à guerra dá e leva. E ele levou mais do que deu.
Por vezes fica com os olhos turvos e começa a chorar.
Nesses dias não sai de casa. Nem do quarto. Nem da cama.
Desenha fios de metal e aranhas muito coloridas.
Pode passar assim dias e dias alimentando-se apenas de iogurtes naturais e fruta cristalizada. Também lê revistas científicas, mas lê os artigos do fim para o princípio. Depois traduz alguns para o árabe e no fim rasga-os.
Sabe tocar piano, andar de bicicleta e assobiar com os dedos. Toca piano só a partir das cinco da manhã e apenas até ao amanhecer. Nunca o faz fora deste intervalo de tempo.
Tira muitas fotografias às suas mãos e depois amplia-as muitíssimo para observar os poros e os pêlos da epiderme.
Nos dias de chuva mia muito. Nos dias de sol muge como os bois do barroso.
Na sua quinta da aldeia tem uma zebra manca que comprou a um circo. Escova-a todas as semanas e passeia-a pela aldeia.
Também toca muito bem cítara. Mas os amigos não gostam deste tipo de música. Coisa que o irrita muitíssimo e o faz estalar os dedos.
Costuma sair nas noites de geada e passear um galo de briga cego que comprou a um mexicano de férias em Espanha. Costuma dar-lhe pipocas picantes e levá-lo ao Miradouro de S. Lourenço para lhe mostrar a cidade de Chaves. Nesses dias o galo canta que se farta e ele acompanha-o à guitarra.
O José é muito habilidoso com as mãos. Aprendeu a fazer croché e confecciona lindos carapuços para árabes e judeus. Escreve-me cartas enormes com letras desenhadas a rigor e isto vivendo nós apenas a cem metros um do outro. E envia-mas sempre em correio azul. São cartas que falam do seu amor pelos passeios, pelos candeeiros, pelos bancos de granito, pela poesia chinesa antiga, pelas flores da urze e da carqueja, pelo musgo dos muros e pelos reflexos do céu nas águas do Tâmega.
Ontem compôs uma música muito bonita para o seu galo cego.
Hoje tocou-a para mim.
Eu até chorei.
Depois fomos os dois, sempre pelo mesmo passeio, até ao rio, descalçámo-nos e molhámos os pés nas suas águas tranquilas.
Então ele tirou um grilo do bolso e pediu-lhe que cantasse uma ária de Mozart.
O grilo não se fez rogado e deslumbrou todos os presentes.
O mundo é, por vezes, um lugar estranho, mas encantador.