439 - Pérolas e Diamantes: Do júbilo à vergastada
Fascinam-me os pré-rafaelitas. Eles defendiam que a arte se começou a degenerar logo após a Idade Média. Ou seja, desde o início do Renascimento a arte separou-se de toda a espiritualidade, tornando-se numa atividade puramente industrial e comercial. Os chamados grandes mestres do Renascimento (Botticeli, Rembrandt ou Leonardo da Vinci) passaram a comportar-se como simples chefes de empresas comerciais, exatamente como Jeff Koons, Damien Horst, ou a portuguesa Joana Vasconcelos, dirigindo com pulso de ferro oficinas de cinquenta, ou cem assistentes, que produziam em cadeia quadros, esculturas, frescos. Limitando-se eles a pessoalmente fornecerem a orientação geral, a assinar a obra acabada, e, sobretudo, dedicavam-se às relações públicas juntos dos mecenas da altura: os príncipes ou papas.
Por falar em civilização, pus-me a ler e a pensar e deparei-me com coisas um pouco estranhas. Ao nativo americano que rezava aos lobos chamaram-lhe selvagem. Ao nativo africano que rezava aos seus antepassados chamaram-lhe primitivo. No entanto, nós, os tais da cultura ocidental, achamos do mais simples senso comum rezarmos a um homem que transformou a água em vinho. Curioso: até nos consideramos uma cultura avançada. Superiores aos outros, em tudo.
As almas boas mais tocadas pela fé dizem que nos templos que frequentam praticam a veneração jubilosa do Senhor, que com a ajuda do senhor abade analisam profundamente as escrituras e que até se oferecem à paixão e à catarse. Dizem ainda sentir nesses lugares a presença do Espírito Santo dentro de si.
A mim, da Bíblia, para além da transformação da água em vinho por Jesus, que a maior parte da família adorava, tanto a história como a bebida, que apelidavam de sangue de Cristo, divertiram-me muito as histórias de Noé e o dilúvio, de Moisés a separar as águas do Mar Vermelho, de David a esmoucar Golias e Jesus a vergastar os cambistas no templo. Sansão foi o meu primeiro Super-Herói. É impagável um jovem matar centenas e centenas de pessoas apenas com a mandíbula de um burro. Mas a coisa começou a perder a piada com a chegada de Paulo e da sua mania em escrever cartas aos Efésios e a outros povos espalhados pela diáspora.
Deus é também um ser ardiloso, cheio de boa vontade, mas um pouco desconfiado, pois muitas vezes costuma colocar os seus seguidores à prova para ver se ultrapassam os obstáculos e continuam determinados na fé de o continuarem a adorar. Jó é o exemplo mais paradigmático.
Como devem saber os meus caros amigos, não há ninguém mais escrupuloso em matéria de religião do que um agnóstico, ou um ateu.
Quando já com certa idade, e alguma irreverência marxista, fazia algum comentário deste tipo na presença da minha avó, ela perdia momentaneamente a sua atitude conciliatória e admoestava-me dizendo que não me atrevesse a contrariá-la, a contradizê-la, a subestimá-la. O que era ao mesmo tempo uma ordem e uma ameaça.
O problema das religiões, sobretudo as monoteístas, na qual podemos, e devemos, incluir o Comunismo, é que se movem pela inércia, trabalham pelo hábito, praticando uma espécie de autoengano pensando que possuem as melhores ideias do mundo. Por incrível que pareça, o que as mantém é o provincianismo e a incultura.
As religiões são história. E a história não é uma ciência. É ficção.
Tenho de admirar aqueles jovens que ainda teimam em estudar os autores que fazem parte do património da Humanidade: Platão, Ésquilo, Sófocles. E também Racine, Molière, Vítor Hugo. Ou ainda Balzac, Dickens e Flaubert. Além dos românticos alemães e dos romancistas russos. E também de Pessoa e Saramago.
E ainda me surpreendem mais os familiarizados com os principais dogmas da fé católica, cujas marcas na cultura ocidental são muito profundas. Em contraste com os seus contemporâneos que sabem mais das aventuras do Homem-Aranha do que da vida de Jesus.
De pouco serve a springbok ser o segundo mamífero terrestre mais rápido do mundo já que o primeiro é a chita, que dele se alimenta.
Ou seja, pego nas palavras de Saramago e despeço-me por hoje: “Sou um espírito profundamente religioso. É preciso ter-se um altíssimo grau de religiosidade para fazer um ateu como eu.”