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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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27
Mai19

444 - Pérolas e Diamantes: Nem Ulisses conseguiu

João Madureira

 

 

Ler Faulkner ou Saramago exige esforço. O seu tom autoirónico e de autoenaltecimento criaram um estilo. Por vezes podemos confundi-los com velhos vagabundos que alimentam pombos. Mas é engano. Os artistas costumam ser extremamente vaidosos e estranhamente endiabrados.

 

Dizem que faz parte da dignidade de um ser humano o longo sofrimento e o orgulho desprezível. Tretas.

 

Se a Humanidade é uma criação de Deus, estou em crer que o Criador acha que fracassou. Há quem confunda brutalidade com beleza.

 

A procura do sentido da vida remete-me para a velha história de Nicolau de Cusa. Este monge afirmou que quantos mais lados acrescentarmos a um polígono regular inscrito num círculo mais ele se parecerá com o círculo. Mas, teoricamente, é cada vez menos um círculo, porque um círculo só tem um lado. Para resolver o paradoxo, Nicolau disse que só podemos eliminar a distância entre os dois através de um ato de fé. É o tal salto no escuro.

 

O problema é quando finalmente encontramos o inimigo e o inimigo somos nós.

 

Por vezes sinto-me uma avestruz a sair de uma fábrica de frangos. Tudo o que sei é que já não sou um pintainho.

 

Penso que a minha cidade deixou de pertencer ao futuro. Mas eu sou um pessimista.

 

Tenho de admitir: sou um agnóstico do progresso. Mas também sei que o velho mundo ordeiro não é coisa em que se possa confiar, nem sequer para escrever um livro. Os sons da modernidade, em vez de harmonizar o que era discordante, criaram ainda mais discórdia.

 

Não é à toa que vivenciamos a nossa irrelevância. De facto, a irrelevância pode ser divertida até ao momento em que deixa de o ser.

 

A democracia dá ares de esgotamento. Votamos no partido com que alinhamos, mas ele já nada nos diz interiormente. Aqui chegados, lembro-me sempre que há duas maneiras de tirarmos um penso-rápido.

 

Os radicais acham que para se mudar o mundo é necessário dizer “não” a tudo e dessa forma se encerra o assunto. Mas eu, depois destes anos todos, sei que não é possível mudar nada se não se estiver disposto a dizer sim.

 

Ter variedade de escolha não é o mesmo que ter liberdade de escolha. Sobretudo quando são as outras pessoas a determinar essa escolha e não nós. Não é nada agradável ser uma espécie de exemplo ilustrativo de um argumento qualquer.

 

É da ciência antiga: as pessoas generosas são más negociantes.

 

Quando começa a ambição, terminam os bons sentimentos.

 

Se podemos dizer tudo o que nos apetece é porque aquilo que dizemos não faz diferença nenhuma.

 

As minhas certezas estão carregadas de dúvidas. E as minhas dúvidas estão, cada vez mais, carregadas de certezas.

 

Já os políticos mais apreciados e queridos pelo povo são os que desenvolveram a arte de dizer sim para conseguir chegar ao não e os que aprenderam a dizer não para conduzir a um sim. São ainda capazes de se dizerem apreciadores, e cultivadores, de uma tal pobreza honrada, enaltecendo o velho relógio da sala que nos remete para uma abastança já desaparecida. Gostam de dizer enfaticamente, lembrando Balzac, que compreender é igualar.

 

A social-democracia é a mãe de todas as vaidades. E de todas as desculpas. E de todas as justificações.

 

O pudor, mesmo disfarçado, possui os seus requintes. Isto gostam de repetir os que apreciam os bons lugares-comuns, como o tal de que não foram eles que escolheram a política, mas que foi ela que os escolheu.

 

É a crua realidade dos factos: vivemos entre o deslumbramento do homem executivo e do socialismo agnóstico.

 

Além disso, todos acreditamos em milagres. E esse é o principal milagre.

 

Em “A Minha Luta”, Karl Ove Knausgard reflete sobre o nosso tempo, sobre o fosso que existe entre o que se deve pensar e o que verdadeiramente se pensa, entre o que se devia sentir e o que sente realmente. E também entre o que o mundo devia ser e o que é. Ou seja, entre a ideologia e a realidade, entre a política e a literatura.

 

Cresci a sonhar com a possibilidade de fazer algo heroico. O radicalismo parece levar-nos a esse caminho. Mas sei agora que os heróis não existem, a não ser no papel.

 

Nem Ulisses foi capaz de fugir ao seu destino.

 

Na vida, ser sensível é mau, muito mau. Mas um escritor não consegue viver sem esse defeito.

 

PS – Descobri porque gosto muito, mas mesmo muito, de Bach, sobretudo das fugas. Apesar de revelarem uma estrutura altamente cerebral, quase matemática, estão carregadas de emoção.   

 

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