18
Jun06
Em defesa da amizade
João Madureira
O meu amigo Miguel é muito distraído. Muito inteligente, mas muito distraído. Muito boa pessoa, mas muito distraído. Distrai-se com muita facilidade. Ainda ontem, quando andávamos a passear, foi de encontro a um poste de iluminação pública. Fez um grande galo na testa, mas nem sequer se queixou. O Miguel fala muito, pensa muito, distrai-se muito. Por vezes também se ri com muito saber. Muitos dos meus amigos dizem que ele é maluco, mas eu garanto-vos que não é. De maluco não tem nada. Ele é muito esperto, muito inteligente, muito compreensivo, muito efusivo, muito estudioso. Só que é muito distraído. Numa noite entrou dentro de uma casa alheia pensando que era a sua. Deitou-se na cama e só quando os donos se puseram aos gritos é que ele se deu conta do equívoco. Aquilo ainda foi uma grande trapalhada, pois meteu polícia, bombeiros, insultos e até prisão e julgamento. Dizem que nessa noite na esquadra recitou o Anticristo de Friedrich Nietzche inteiro, com prefácio, data de edição da obra, tradução, capítulos e respectivas páginas. Parece que o polícia de plantão o ameaçou com um processo por desrespeito à autoridade e por provocação religiosa pois não conseguiu descortinar que o texto era do filósofo alemão e não um insulto gratuito, ou um gozo fininho. Os polícias de agora são muito sensíveis e muito senhores do seu nariz. Até já têm alguma cultura. Mas daí até conhecerem o Anticristo de Nietzche vai ainda uma grande distância. Cultos, cultos, mas nem tanto. Muita cultura também embrutece, disse-me uma vez um.
Não me lembro de um único dia em que eu e o Manuel (*) andássemos a passear e ele não tivesse tropeçado nalguma coisa. Já tropeçou em cães e cãezinhos, gatos e gatas, lambris de passeios, pedras pequenas e grandes, pessoas de vários tamanhos, raças, credos e ideologias, crianças calmas e rabugentas, choronas ou risonhas, polícias e guardas republicanos, bombeiros voluntários e sapadores, soldados, sargentos, tenentes, capitães, majores e por aí fora. Parece que ainda só não tropeçou num contra-almirante. Também já tropeçou em carros de grande e pequena cilindrada, bicicletas de montanha e de corrida, triciclos novos e velhos, burros de carga, cavalos de corrida e, até, mendigos de várias espécies e origens, idades e proveniências, vícios e predilecções. Quando isso acontece fica muito aflito e começa a gaguejar. Acto contínuo, oferece uma grande esmola ao sujeito passivo. Alguns deles fazem-se mesmo à colisão. Mal o avistam na rua, tentam sempre ir dar-lhe um encontrão. Ele pede sempre muita desculpa e dá-lhes obsessivamente uma esmola choruda. Mas, a partir daí, o seu discurso torna-se ininteligível. Não só pela temática, mas também por causa da gaguez. É aflitivo. E ele sabe-o. Falar sobre semiótica, ou sobre epistemologia, ou cibernética a gaguejar é uma tortura quase insuportável. Mas se eu o abandonasse quando ele está nesse estado quase catatónico seria uma traição. Afinal eu sou seu amigo. E os amigos devem servir para alguma coisa.
O Miguel só tem medo de uma coisa: tropeçar num cigano que esteja a pedir esmola e que finja que toca o acordeão. Aí põe-se aos gritos e tem que tomar dose tripla da sua medicação para os nervos.
Ninguém é perfeito. Nem o Miguel. Nem eu. Nem o Nietzche. E, muito provavelmente, nem o amigo leitor.
Essa é que é essa.
(*) Onde se lê Manuel deve-se ler Miguel, porque, sendo o Miguel, Manuel e o Manuel, Miguel, alguns leitores podem confundir-se por falta de informação. Está claro que o erro não está nos nossos leitores, está em nós. O Miguel é muito distraído e eu também tenho os meus deslizes. Mas, tenho de reconhecer, o Miguel não pode ser culpado pela minha falta de rigor, que não falta na amizade. A minha amizade pelo Miguel, que também é o Manuel, continua a mesma, mas a minha amizade pelo senhor Pintassilgo cresceu de uma forma exponencial. A ele o meu bem-haja. E não se distraia, caro amigo. Mantenha-se atento. Eu e o Miguel, que também se chama Manuel, como atrás referi, ficamos-lhe eternamente agradecidos pelo cuidado da sua leitura e a atenção prestada ao nosso discurso.