07
Jun06
O pano
João Madureira
O ser humano é muito paciente e picuinhas.
Pode querer bordar panos para pôr na mesa e em cima desses panos, cheios de buracos desenhados com cruzamentos de agulhas, colocar uma jarra cheia de lindas flores.
Depois as flores morrem, mas o pano não.
O pano só precisa de ser lavado e passado de vez em quando para manter a sua beleza fixa.
Entretanto o tempo passa, as pessoas envelhecem e morrem e o pano mantém-se incólume.
Alguém o herda, o põe em cima da mesa e em cima dele coloca uma jarra repleta de lindas flores.
Depois as flores murcham e morrem, mas o pano não.
O pano só reclama uma lavagem de vez em quando.
Depois os seus donos envelhecem, morrem e o pano muda novamente de mãos.
De novo é colocado em cima de uma mesa. E em cima dele colocam novamente uma jarra com lindas flores.
Um dia a jarra quebra-se e a água suja o pano que já foi abundantemente lavado e herdado por muita gente.
Começam a aparecer nele os primeiros sinais de velhice.
São agora visíveis os primeiros buracos.
Alguém o recorta e faz dele um pano mais pequeno para pôr numa mesinha pequena onde estão alguns objectos de estimação.
O ser humano é muito paciente. E começa tudo de novo.
Novo pano. Nova família. Nova jarra. Nova mesa. Novas flores. Talvez um gato ou um periquito na gaiola. Ou, quem sabe, alguns peixes num aquário. E o pano lá está. E as pessoas também, pacientemente a observar os peixes, ou o periquito, ou a fazer festas ao gato enquanto ele ronrona de prazer.
Também a Terra se move. E a Lua. E os cometas deslizam no céu à noite.
E o pano continua a sua saga temporal.
Não morre, mas definha.
Consome-se até desaparecer no pó do tempo.