O Homem Sem Memória
10 – Quando chegaram à aldeia, estacionaram o carro junto da igreja e deslocaram-se a pé às instalações do edifício escolar. Cá fora, as mulheres rezavam e os mais jovens tinham transformado o recreio da escola numa festa de Entrudo. Dentro da sala, uma meia dúzia de homens gritavam impropérios e faziam juras de morte ao comunismo e à Rússia, terra que a Nossa Senhora de Fátima havia de converter para a salvação do mundo.
Os camaradas esclarecedores, quase todos docentes, continuavam na sua teima em falar dos amanhãs que tinham de cantar também em Portugal, tal e qual os galos que os camaradas camponeses possuíam nos seus galinheiros. Bastava de especuladores e intermediários gananciosos, de parasitas que viviam à custa do povo humilde e laborioso. O Partido, liderado pelo camarada Punhal, era o guia redentor, o farol revolucionário, a chama ardente da vontade dos proletários de todo o mundo, que em aliança sagrada com os camponeses, tinha de triunfar, custasse o que custasse.
Cá fora as mulheres, juntas a um canto, continuavam a rezar monocordicamente muitas ave-marias e pais-nossos. Os rapazes, na sua estupidez crua e profana, faziam rebentar bombas de carnaval e lançavam bichas-de-rabear para debaixo das saias das raparigas. Elas, tontas de lascívia, sorriam e davam gritinhos histéricos. Lá dentro os homens maduros gritavam alto: “Morte ao comunismo, Punhal para a Sibéria”. Os camaradas esclarecedores teimavam na sua ladainha revolucionária. O camarada da aldeia era o único que ouvia com atenção a arenga retirada, palavra a palavra, com vírgulas e tudo, do editorial da “Verdade”. Os maneirismos de linguagem eram uma imitação barata e triste da musicalidade do discurso do camarada de cristal.
Dentro da sala, o ambiente estava a tornar-se pesado. Os camponeses olhavam para as meninas comunistas com ar de quem não se importava mesmo nada de abocanhar mulheres tão tenras e fáceis. No fundo, o comunismo era isso mesmo, igualdade, fraternidade… e amor livre.
Os camponeses, com os olhos postos nos seios das meninas camaradas e no traseiro generoso da companheira mais madura, acusavam o Partido de querer-lhes roubar as terras, as casas, os animais e a religião. Ou seja, Deus. E a Nossa Senhora também. E os santos. Substituindo-os por imagens de Lenine, Marx, Engels e Punhal. Isto apesar de Punhal afirmar que detestava o culto da personalidade. Dele não havia fotografias em nenhum centro de trabalho do Partido. O único que circulava era os seus desenhos de prisão, com homens possantes, mulheres de pés descomunais e seios como os pães da padeira de Aljubarrota. Apesar de famintos e paupérrimos, os retratados nos desenhos do líder comunista, eram todos bem constituídos, a irradiar saúde e esperança no povo do qual faziam parte integrante, quase como anjos magnânimos, insensíveis à dor e às necessidades humanas primárias.
“Ai Jesus, vem aí os guerrilheiros!”, gritou aflita a beata mais beata das beatas da aldeia.