517 - Pérolas e Diamantes: Segunda visão
Apesar de enxergar mal, apercebo-me de que um pica peixe-azul desperta da observação e esvoaça em voos habilidosos de mergulho para papar insetos cansados de andar à roda. Poucos se dão conta deste pormenor. É necessário ter uma segunda visão.
Também a democracia é assim: o que está à vista, à vista está . O resto não se vê por ser segredo de Estado. Por vezes o patético cobre as pedras da calçada.
Apenas o interior de uma linguagem pode ajudar a decifrar um sistema.
O problema do poder reside sempre nos ciúmes dos descontentes.
O problema do sistema democrático é que atua sempre entre o compromisso e a contemporização, entre a concessão e a tolerância, entre o confronto das ideias e das personalidades. O que, na maioria das vezes, torna os seus protagonista incapazes de decidir. É necessário garantir os empregos, os negócios e os lugares de direção. E a rotina da papelada consome quase a totalidade do tempo.
É bonito amar a democracia. Só se respeita aquilo que se ama. O amor é uma coisa bela. Só que praticá-lo implica troca de fluidos e alguma sujidade.
O altruísmo e a generosidade costumam sair de muita raiva acumulada. Também as rainhas de antigamente costumavam ter junto de si criaturas disformes a quem dedicavam um género estranho de proteção apaixonada. Os seus filhos eram criados por quem sabia: as amas.
Uma coisa nos afasta dos idealistas: a sua incapacidade para organizar o pensamento. Todo o bom político sabe que em política nada do que é essencial é essencial. Tudo são rodeios e compromissos no meio de coisa nenhuma.
Mas... mas... mas... sim, cheguei à conclusão, tal como Nietzsche, de que há sempre uma nova oportunidade de se provar que “todas as experiências são úteis, todos os dias santos e todas as pessoas divinas!” Está bom de ver que o filósofo alemão andava sob a influência do ópio. Eu encontro-me apenas sob o efeito catártico de um vírus confinador.
A maioria dos portugueses acabou de sair da Idade Média às cambalhotas. É uma espécie de nova geração de urbanizados.
Nós somos supersticiosos até na desconfiança. Nem naquilo que vemos acreditamos. Gostamos mais de acreditar em milagres. E na Nossa Senhora de Fátima. E nos três pastorinhos.
O bom povo português por vezes parece que cresce, para depois nos dar a impressão de que regride, para depois voltar a crescer e a regredir novamente. O seu progresso é circular. Parece bonito, mas leva-nos sempre ao mesmo lugar.
A conciliação costuma turbar a clareza dos objetivos. E nós somos conciliadores. Agustina Bessa Luís escreveu em Os Meninos de Ouro que “o bom caráter do povo português provém da sua ignorância”. Mas é a instrução que permite considerar os detalhes, pois possibilita dissimular sempre alguma coisa, protegendo-nos nas ocasiões mais difíceis. É a insensatez o que nos leva à moderação.
Nós dizemos ter orgulho na humildade, como se fôssemos membros da nobreza. Mas não é verdade. Andamos sempre aos mandiletes de uns e de outros, transportando recados e recomendações. Tendo a nossa virtude própria, gostamos mais de aderir e elogiar a dos outros.
Mais importante do que acreditar naquilo que alguém nos diz é acreditar nessa pessoa.
A inspiração é inseparável do espírito do lugar. A inspiração é superstição. E encarnação. É o conceito perfeito de confidência.
A invisibilidade é uma coisa visível. Os pensamentos ou brilham ou se apagam. São como relâmpagos. Não existem por necessidade. Não se podem escolher.
As fábulas, por muito boas que sejam, não podem fazer-nos acreditar que é legítimo trair-nos a nós próprios. Não é preciso acreditar nas doenças para que elas sejam uma realidade que nos mata.
O ressentimento é uma lealdade despropositada.
Devemos condenar a inveja, o ciúme, a vingança e o castigo.
Os fanáticos do proselitismo, dos passeios ao ar livre, do vegetarianismo, das condições superlativas da ginástica e da abolição do álcool degeneram sempre em totalitários fasciocomunistas.
Louvados sejam aqueles que conseguem sentir o vento redentor da gravidade terrena.
Nunca estamos isentos de preconceitos. E os que se julgam libertos deles acabam por cair noutros novos.