518 - Pérolas e Diamantes: A má consciência
A distopia atual apresenta-se-nos como uma espécie de liberalismo a caminho da loucura. Há demasiado ócio.
A realidade não é só aquilo que acontece aos outros. Torna-se necessário desconfiar das lindas palavras proferidas pelos papagaios altruístas.
Apesar de não o verem, muitos portugueses continuam a ouvir ao longe os cascos do corcel do nosso infatigável rei encoberto D. Sebastião.
Depois de quase meio século de vida, a nossa democracia parece estagnada. Imaginámos um país diferente e uma vida diferente, mas o país, e a vida da maioria dos portugueses, continua a ser cinzenta. Respondemos à esperança com os socos da realidade.
Temos de convir que a má consciência não é a consciência democrática. Nem pouco mais ou menos. O problema é termos todos de a pagar, com língua de palmo, por causa dos maus democratas, que, por incrível que possa parecer, são os que mais a invocam (em vão), ou dizem defendê-la. A tal putativa democracia.
Nós não temos má consciência do passado, nem pretendemos esquecer a velha memória das cumplicidades. Apenas pretendemos mudar de vida.
No meio de todo este processo, não é o povo quem tem má consciência. Mas é ele quem, invariavelmente, tem de pagar a conta dos que cometem erros em seu nome. Ou invocando-o sempre em vão. Sacrificamo-nos todos em benefício de alguns.
As tretas de ontem, são as penas de hoje. E serão os sacrifícios de amanhã.
Mas a pós-modernidade está bem presente no nosso dia a dia, tanto quando cuidamos dos cães e dos gatos, como quando alinhamos os dentes nas clínicas da especialidade para podermos sorrir com insistência e conseguirmos mastigar os vegetais com o necessário rigor dietético.
Tudo tem a harmonia de um carrossel. E a mesma lógica. E o mesmo sentido de diversão.
A verdade é que somos bons a cozinhar bacalhau e a ver navios.
Ensinaram-nos que o nosso destino é viver entre a felicidade e a indiferença. A ritmar as atitudes, sem nos entusiasmarmos.
Nós gostamos que nos contem a história de D’Artagnan, mas a verdadeira.
Nós gostamos de festejar o valor da poesia, da nossa raça, do nosso partido, do nosso concelho, e de nomear comissões e subcomissões para se reunirem nos dias pares de cada mês para deliberarem sobre as respetivas comemorações.
E decidimos dar sempre um cunho e um significado que testemunhe o alto valor intelectual do povo. Sobra-nos em altruísmo, o que nos falta em criatividade. Mas não se pode ter tudo.
Gostamos de festivais poéticos, culturais, musicais e, antigamente, até dos taurinos. Mas agora touros nem vê-los, quanto mais comê-los.
Nós gostamos muito de ajudar a História e até as suas personagens a movimentarem-se à vontade. E, se nos deixassem, enfiávamos meio Portugal no Panteão e nos Jerónimos.
Claro que muitas vezes gostamos de pensar no almoço. Nós gostamos muito de almoçar de graça nos dias festivos. Mas também todos sabemos que não há almoços grátis.
Antigamente, nesses dias, acendiam-se os fachos da lírica eterna que nos possuía. Agora fazem-se sessões pirotécnicas de fogo preso que nos enchem de satisfação e orgulho.
Apreciamos fechar com estrondo todo o tipo de comemorações.
Sem fogo, todos sabemos, a festa nem parece festa.
E temos sempre os bombeiros a apoiar tudo.
Todos os portugueses sabem que o amor é o que conta na vida. O resto são tretas. Por isso todos amamos com força. E isso é o que interessa.
O que seria de nós sem o amor, como muito bem diz o senhor presidente da República, que, mais do que um comentador, é um vidente. Ao senhor presidente custa-lhe muito pouco adivinhar o futuro. Provavelmente aprendeu com a Blimunda a ver através dos corpos opacos.
Para ele, todos os empreendimentos devem ser, essencialmente, amorosos. Por alguma razão lhe chamam o presidente dos afetos. E o epíteto está-lhe muito bem empregue.
Nós somos muito bons a esperar pelas comemorações. E quando elas se transformam em feriados, é ouro sobre azul. Mas somos ainda melhores a falar. A falar dos outros e do tempo. Dentro de cada um de nós estagia um ministro das finanças e um meteorologista.
Pouco nos interessa o presente. Nós gostamos muito de vegetar nas glórias do passado.
Antigamente é que era. Já nada muda como soía.