As flores também vão para o Inferno
“– Sabias que o velho Mr. Radley era um Anabaptista lava-pés dos sete costados?...
– Isso é o que a senhora é, certo?
– Não sou assim tão devota, minha filha. Sou uma Anabaptista.
– Vocês não acreditam todos na cerimónia do lava-pés?
– Acreditamos. Em casa, na banheira.
– Mas nós não podemos comungar com vocês todos…
Aparentemente decidindo que era mais fácil definir o anabaptismo primitivo do que a comunhão fechada, Miss Maudie afirmou:
– Os lava-pés acreditam que tudo o que dá prazer é pecado. Sabias que um destes sábados houve alguns que saíram da mata e vieram p’rá aqui dizer-me que eu e as minhas flores íamos para o Inferno?
– As suas flores também?
– Sim, senhora. E que vão arder juntamente comigo. Achavam que eu passava demasiado tempo a desfrutar da Natureza que Deus nos deu e não dentro de casa a ler a Bíblia.
A minha confiança nos sermões do púlpito diminui com a visão de Miss Maudie a arder para sempre nos vários infernos Protestantes. Era verdade que ela tinha uma língua afiada e não andava propriamente pelo bairro a fazer boas acções, como fazia Miss Stephanie Crawford. Mas enquanto ninguém que tivesse um pouco de tino confiava em Miss Stephanie, eu e o Jem tínhamos uma confiança quase inabalável em Miss Maudie. Nunca tinha feito queixa de nós, nunca nos tinha perseguido e não estava minimamente interessada na nossa vida privada. Era nossa amiga. Por isso não compreendíamos como é que uma criatura tão atinada podia viver com o perigo do eterno tormento.
– Mas isso não está certo, Miss Maudie. A senhora é a melhor pessoa que conheço.
Miss Maudie sorriu.
– Obrigado, minha cara amiga. O problema, é que os lava-pés pensam que as mulheres por si só já são um pecado. Sabes, eles levam a Bíblia à letra.
(…) – Retira já o que disseste, rapaz!
Esta ordem, dada por mim ao Cecil Jacobs, marcava o início de tempos um tanto ou quanto conturbados, tanto para mim, como para o Jem. Cerrei os punhos e estava pronta apara atacar. O Atticus já tinha prometido que me castigava se soubesse que eu tinha andado à pancada, já era bem crescidinha para coisas tão infantis, e quanto mais cedo aprendesse a controlar-me, melhor seria para todos. Mas depressa me esqueci de tudo isso.
A culpa foi toda do Cecil Jacobs. Tinha andado a dizer no recreio da escola que o paizinho da Scout Finch defendia os pretos. Eu neguei-o. Mas depois até contei ao Jem.
– O qu’é qu’ele q’ria dizer com aquilo? – perguntei.
– Nada – disse o Jem. – Pergunta ao Atticus, ele explica-te.
– Defendes pretos, Atticus? – perguntei-lhe eu nessa mesma tarde.
– Claro que sim. Não digas preto, Scout. É feio.
– Mas’é o qu’toda a gente diz na escola.
– Então, a partir de agora passa a ser toda a gente, menos uma pessoa…
– Mas então, se não queres que cresça a falar desta maneira, por que é que me mandas pr’á escola?
O meu pai olhou para mim de forma indulgente. Via-se que estava obviamente divertido. Apesar do nosso compromisso, a minha campanha para evitar a escola tinha continuado aqui e ali, desde a minha primeira dose de aula: o início de Setembro último tinha trazido consigo depressões, tonturas e leves queixas gástricas. Cheguei ao ponto de pagar uma moeda só para ter o privilégio de esfregar a minha cabeça contra a do filho da cozinheira, Miss Rachel, que sofria de tremendas impigens. Não adiantou.
Só que agora havia outra coisa que me apoquentava.”
Por Favor Não Matem a Cotovia – Harper Lee – Difel