534 - Pérolas e Diamantes: Os atrativos da busca
Sempre senti que tive um cavalo a que lhe faltou sempre a sela. E o cavalo até era bom.
Sempre fui melhor a escrever do que a pintar paredes e a fugir. Nunca me senti um underground, comigo foi sempre tudo feito às claras. Nunca tive jeito para as mistificações, para as desculpas, para a mentira e para a manipulação.
Perante algo que não conseguem compreender, as pessoas tendem a falar e a exagerar aquilo que viram.
Eu não acredito em milagres mas nos mais rigorosos princípios da humanidade. Nós temos de acreditar mais nos outros do que nas nossas falhas.
A verdade é que cheguei a acreditar que os burros eram mágicos.
Uma vizinha nossa tinha um gato amarelo que gostava de devorar pintos e depois ia para os baldios, onde cresciam as papoilas, purgar-se petiscando ervas.
Também por ali medrou um rapaz estouvado que se empenhou em desenvolver um génio ácido e vingativo que ainda hoje conserva. Cada um é para o que nasce. Ou nem para isso.
E também havia raparigas que não se cansavam de desfolhar malmequeres para saber se o seu amor estava para breve.
Nos bons velhos tempos, os amantes decadentes, burguesotes ou fidalgotes, eram pessoas da boémia que se diziam empenhadas entre o suicídio e uma cruel orgia. Comentam que eram gente boa, artistas ou jovens mestres de línguas ou de outras licenciosidades eletivas.
A inspiração flutuava no ar misturada com a aguardente e o fumo dos cigarros. Afirmam que também eram gente empenhada em empunhar, qual espada de mosqueteiro, fatias de presunto e copos de tinto de boa cepa.
De feio só havia as fitas mata-moscas junto das portas das casas de pasto. Ou uma que outra criança andrajosa a pedir tostões para o altar do Santo Antoninho. Asseguram que havia muita pobreza escondida. Qual o quê! Não existia era esbanjamento. Não havia era cambadas de incréus, como agora.
Também garantem que existia muita conformidade, mas tal era fruto da emoção. A bonomia, quando alguém mais audacioso a expressava, era zelosa e cheia de ponderabilidade.
Na nossas vilas e cidades de província guerreavam-se barbeiros e poetas, padres arqueólogos e bacharéis em leis. E também estavam na moda as missas, as festas de beneficência, as temporadas nas termas, as verbenas e a laranjada Flávia. Naquele tempo, apenas o calor de verão era gordo como a carne da pá do porco cevado a lavadura.
Muitos cavalheiros partilhavam o mesmo alfaiate e as suas distintas esposas a mesma costureira.
Os amantes, mais do que se amarem uns aos outros, amavam o flirt.
Muita da instrução era feita através do catecismo: “Padre nosso, rilha o osso, rilha-o tu que eu já não posso”.
Não é a presença daquilo que amamos o que nos satisfaz, mas sim a sua recordação. Os fantasmas fazem parte da monotonia.
A qualidade, naqueles tempos, era difícil e até misteriosa.
E havia velhos tão velhos que até a morte perdia sentido quando olhávamos para eles.
Apesar do filme ser colorido, os cenários eram todos a preto e branco. As caras pareciam de fotografia. A maioria das pessoas sentia-se de segunda, de categoria inferior. Alguns de nós éramos visíveis apenas para os nossos pais.
Os jovens suburbanos eram impercetíveis. Sentíamo-nos fora do alcance do mundo. Éramos bons a lidar com a tristeza. O que não é coisa de espantar, pois o país era de uma tristeza singular.
A busca possui sempre atrativos. A mim aconteceu-me a denominada narrativa da busca. Que é uma forma de tentar combater o amorfismo da vida. Por vezes alivia-nos a angústia de sofrer e sentir o que o mundo é. Incoerente. Depois refugiei-me no estudo e nas ficções. E podia ter sido tudo, só que não foi. Mas é o que agora resta.
Mesmo sem querer, aprendi na leitura de Camões o queixume, pois, ao que dizem os estudiosos do cânone literário nacional, não existe outro poema épico em que o seu autor se queixe com tamanha intensidade, que envie tantos recados e faça tantas reprimendas, em que moralize tanto, como n’Os Lusíadas.
Foi por isso que me virei para o Quixote, pela ilustração do excesso contra a ilustração do defeito dos Lusíadas.
Ficou-me, no entanto, a angústia de Camões ao falar da corrupção na nossa pátria comum.
A verdade é que as Tágides que inspiraram Camões eram musas de água doce. Contudo, temos de reconhecer que Os Lusíadas são uma veemente condenação da guerra e do desmando dos poderosos, da brutalização de inocentes e da intolerância religiosa e cultural.
Valha-nos isso, pois já não é pouca coisa!