579 - Pérolas e Diamantes: Marcelos há muitos...
Marcelos há muitos. Marcelo Caetano, Marcelo Rebelo de Sousa e outros com menos visibilidade, mas, não tão próximos e, ao mesmo tempo, tão distantes de nós. Ambos gostaram (gostam) de falar connosco como se fizessem parte da família. Mas, estou em crer, foi (é) tudo artificial. Ou quase. Desta vez não vou falar do Caetano, até porque me parece mais digno de respeito do que este tal de Rebelo, que é muito vou ali e já venho, ou não torno a descer das palavras para me intrometer nas promessas, ou vou mergulhar nas águas do mar da minha praia, alinhadinho e cinzento. Tudo isto resulta da leitura, um pouco banal, de um livro banal, de um ex-primeiro-ministro banal, intitulado “Memórias”, de Francisco Pinto Balsemão. Um livro grande, muito grande mesmo, que não um grande livro. Mas ninguém pode esperar que um diospireiro dê pavias saborosas e perfumadas. Gente desta estirpe apenas desabrocha em rosas garridas, mas com total ausência de cheiro. Cada povo tem o “Expresso” que merece, no nosso caso, enorme e soporífero.
Foi a 9 de dezembro de 1982, a três dias das eleições autárquicas, que Pinto Balsemão, então Primeiro-Ministro do VII Governo Constitucional, recebeu um balde de água fria de Marcelo Rebelo de Sousa. Ou melhor, foi nesse dia que sofreu “a maior traição”, de todas as que lhe fizeram desde que, em dezembro de 1980, foi indigitado como chefe do governo AD. Marcelo Rebelo de Sousa, seu ministro para os Assuntos Parlamentares, pediu-lhe para ser recebido com muita urgência. Balsemão diz que pensava tratar-se de algo importante relacionado com as eleições, por isso marcou a reunião para a tarde desse mesmo dia. Foi então quando, para seu espanto, depois de uma titubeante introdução, Marcelo Rebelo de Sousa lhe revelou o verdadeiro objetivo da audiência: apresentar-lhe o seu pedido de imediata demissão do Governo. Pinto Balsemão tenta saber o porquê de tal intenção, mas MRS fica-se por “explicações vagas e pouco convincentes: cansaço e necessidade de se dedicar à carreira académica”. Pinto Balsemão tenta perceber qual a verdadeira razão de o pedido ter sido feito a três dias das eleições. MRS justifica-se com argumentos de mau pagador. Pinto Balsemão pede-lhe então que o teor daquela conversa fique apenas entre eles e que, apenas após as eleições, se tornasse pública a notícia da sua saída do Governo. MRS respondeu “que isso era óbvio e foi-se embora um pouco às arrecuas”, porque FPB nem “sequer se levantou para o acompanhar”. Na carta manuscrita que deixou na posse do PM, afirma, entre outras coisas, “solidariedade pessoal e funcional” com FPB. Explica também que, “para que não se especule indevidamente sobre qualquer eventual ligação entre esta solicitação – há muito decidida e divulgada – e os resultados das eleições autárquicas, esta missiva é dirigida a V.ª Ex.ª num instante em que é desconhecido o veredicto eleitoral, que espero venha a traduzir-se numa vitória das listas da Aliança Democrática e num reforço da posição do Partido Social-Democrata.”
No dia seguinte, 10 de dezembro, a notícia da saída de Marcelo Rebelo de Sousa foi amplamente difundida pela comunicação social. No sábado, dia de reflexão e vésperas das eleições, aparecem as primeiras especulações sobre os motivos da demissão do Ministro dos Assuntos Parlamentares. Aproveitando os ventos de feição, Jaime Gama, do PS, escreveu: “A desagregação da AD é tão grande que o Governo começa a cair antes de saber os resultados eleitorais.”
Alguns jornais, em manobras de diversão, tentavam atribuir a demissão a um desentendimento entre Alfaia e Marcelo, porque este partira para Inglaterra no dia da interpelação parlamentar ao Governo e Pinto Balsemão o criticara por ter deixado o Secretário de Estado sozinho na Assembleia da República. Outros referiam leituras diferentes da situação política. Outros, ainda, levantavam o velho fantasma de uma remodelação ministerial. Mas todos referiam que a demissão só teria efeito a partir de terça-feira seguinte, o que demonstrava os “inaceitáveis propósitos do demissionário, ao divulgar a sua saída dois dias antes de umas eleições que ele, melhor do que ninguém, sabia serem fundamentais” para Pinto Balsemão.
E assim, com mais uma preciosa ajuda de um militante do seu partido, e relevante membro do seu Governo (já sem falar do caminho que MRS tinha percorrido com Pinto Balsemão, “desde que, em 1972, o convidara para trabalhar no Expresso”), chegou FPB às eleições autárquicas de 12 de dezembro de 1982.