591 - Pérolas e Diamantes: Há pessoas assim...
Há pessoas assim: riem quando lhes cumpre rir, afligem-se quando se devem afligir e choram quando veem um filme concebido para isso mesmo. Quando lhes contam uma piada ou lhes pregam uma partida riem-se a bandeiras despregadas, mesmo que a piada seja de duvidoso bom gosto e a partida mal intencionada. Compadecem-se abertamente com o sofrimento dos outros e até dão alento aos afetados. E revoltam-se, sem espalhafate, quando se apercebem de tratamentos injustos. São leitoras ideais, pois conseguem reagir obedientemente aos intentos e estímulos dos artistas. Por causa delas, o mundo é um pouco mais suportável. São cândidas e sem duplicidade, propensas ao regozijo e à piedade, sempre prontas a ajudar e a agradar. Quase sempre evidenciam um olhar despistado que a todos cai bem. Os franceses apelidam-nas de coeur simple. São tão inverosímeis que provocam alguma desconfiança, nos mais céticos. Ou cínicos. Vivem sempre no rigoroso presente, sempre apegadas ao seu dia a dia, atarefadas no seu trabalho, entretidas com a família, com os colegas e com os amigos. E ainda com as suas atividades citadinas e com os seus diversos compromissos sociais. Ocupam-se com as coisas necessárias e também com as supérfluas. Não gostam de perder tempo com reflexões, meditações ou contemplações. Nem de olhar para a frente e muito menos para trás. O que já foi passou e o futuro a Deus pertence. Por não serem nem elegantes, nem bonitas e muito menos gozarem de uma impertinente inteligência, tudo se lhes perdoa. Conseguem transformar defeitos em virtudes. Por haver gente assim é que continua a ser bom viver nesta mui nobre e mui leal cidade, que continua a ser um pouco austera e grave e também orgulhosa do seu passado remoto, onde tiveram lugar episódios heroicos – intencionalmente exagerados – de grande importância, o que só enaltece a sua fraca altivez… fraca não, franca, o que eu quero dizer é franca altivez. É costume, nas conversas em família, desprezarem-se levemente as outras cidades da região, por as considerarem arrivistas, de gente com mentalidade de mercadores ou merceeiros, quando não egoísta e lamuriosa, ou foliona, ou complexada, ou presunçosa, ou todas as coisas juntas, pois tais características acintosas, costumam andar de mão dada. Mas, é de crer, que são capazes de ver defeitos nos outros por serem comuns a ambos. Todos possuem um amor-próprio ferido. A fama, para o bem e para o mal, é encarada com sobriedade e dissimulação. É normal deixarem-se cativar pelo que desdenham e dizem detestar. O decoro também provoca cansaço. E a prudência. E as virtudes. E a cultura. Sobretudo a cultura costuma provocar muito cansaço. Por vezes até se elege quem representa a negação de todas essas características.
Primeiro queremos ficar na nossa cidade. Depois, quando pensamos que a queremos abandonar, dá-nos a preguiça. Descobrimos que a única coisa que faz sentido é ver passar os anos e as pessoas a atravessar a ponte sobre o rio. Entretanto deixamos de reparar nas suas mudanças. Habituamo-nos a tudo. Avançamos sempre, sem nunca sairmos do lugar ou chegarmos a uma conclusão. E lá vamos convivendo com vigaristas habilidosos disfarçados de pobres diabos. É o hábito dos sítios pequenos ou de média dimensão, onde habitam contabilistas, comerciantes, trolhas-empreiteiros, professores, enfermeiros, médicos, doutores da mula ruça, advogados, burocratas do estado, bancários, farmacêuticos e taberneiros. Toda a gente se encontra nas compras ou nas festas organizadas pelo município. E cá nos vamos habituando ao som dos sinos, aos nevoeiros e ao monótono correr do rio debaixo das pontes. Já não acreditamos na defesa da cidade ou do país, no asseio e na superioridade moral da democracia, nem na igualdade de oportunidades e de direitos. Qualquer excesso de saber e de independência suscita sempre dúvidas e perplexidade. Tudo se gastou, nada se obteve. Está na hora de nos rendermos. Ah!Ah!Ah! Isso é que era bom.