609 - Pérolas e Diamantes: A culpa nem sempre é deles
Os falcões querem sempre dar uso às garras. Está-lhes na massa do sangue. Já os homens estão constantemente a ser traídos pela realidade, pois não são capazes de a ela se habituarem. A verdade é coisa pouco importante. Fingimos que sim. Até uma verdade pode ser substituída por outra verdade sem que disso nos apercebamos. Vivemos numa sucessão de sobressaltos, como se não houvesse nada a fazer. A alma humana possui misteriosas potencialidades. Até para o engano. Dizem que as inquietações metafísicas são o verdadeiro portal para a transcendência. Isso é que era bom. Apenas provocam irritação. A dos outros e também a nossa. Especialmente se forem demoradas. E lá está a senhora a oferecer, mais uma vez, uma máquina de café. Não é avisado voltar a este hipermercado. Uma pessoa com tanta oferta vai perdendo o sentido crítico. A inércia semântica vai tomando conta de nós. Com a rapidez destes tempos pós-modernos, a subtileza tornou-se uma coisa ultrapassada. Agora é mais ruído e luzes estroboscópicas. Pode ser até razoavelmente agradável, mas não é nenhuma fonte de inspiração. Tudo nos quer afastar da realidade. Mas ela, por vezes, pode ser fascinante. Anda por aí gente a despejar no ar sensações de bem-estar. Eles não se sentem bem e que vamos pelo mesmo caminho. E por aqui andam os animadores a entreter as pessoas ou a tentar diverti-las, sejam turistas-clientes ou outra coisa qualquer. A verdade é que ninguém se diverte por aí além. Mas ninguém deixa de insistir. É preciso dar sentido à vida. Mas continua a ser difícil rentabilizar estruturas programadas para estações curtas e descontínuas, essencialmente limitadas ao período estival. As férias de inverno são uma utopia. A sexualidade dos mais velhos baseia-se em variações nostálgicas. No entanto, a realidade faz de nós uns mentirosos bem intencionados. Somos todos europeus, dizem, mas ninguém quer saber da Europa para nada. Os europeus são sempre os outros. A ideia pode não ter sequer a mínima oposição, mas também não suscita o mínimo de entusiasmo. A hostilidade é um sentimento recalcado. É preciso evoluir. Nós concordamos que sim senhor. Mas para onde? Tanto progresso à mão de semear provoca medo. O pobre, quando a esmola é grande, tende a desconfiar. Tenho mesmo pena – uma espécie de pena existencial – do trabalho desses animadores que não sabem lá muito bem o que fazem porque não compreendem lá muito bem o que lhes é pedido. E a culpa nem sempre é deles. A fada Sininho é produto de ficção. Ela e o Peter Pan. E também os guardiões das nossas tarefas sagradas. Não se podem esperar milagres quando não nos explicam o conceito. O segredo das boas coisas está na edição. Basta já de verdades convenientes devidamente esterilizadas e pasteurizadas. O ultramoderno é pastiche. As banalidades simpáticas não passam disso mesmo. Claro que todos percebemos a sinceridade, mas, só por si, isso não nos leva a lado nenhum. Temos de testar a qualidade e depois logo se verá. A mediania não quer sarilhos. O poder é uma teia demasiado intrincada para se perceber. O problema está nos utópicos. Mas uma coisa vos digo, os pragmáticos é que estragam isto tudo. São eles que validam as armadilhas onde acabamos por ser apanhados. Todos assistimos ao espetáculo da política, do poder, sentados enquanto eles vão tecendo a sua manta de retalhos, feita de ventriloquismos, ilusionismos, hipnotismos e de acrobacias faciais. São, ou querem ser, os mestres do circo de grilos e cigarras. Muitos são mesmos bons a entoarem a bela canção da sociedade de bem-estar que dizem dirigir. O melhor mesmo é desconfiar desta rapaziada de província, que se mete na política e diz não ter ambições. Um dia, sem darmos por ela, estão encafuados num ministério qualquer a dar-nos cabo da vida e a cumprimentar-nos como se fôssemos parvos ou ainda pior do que isso, eleitores catatónicos. Eles sempre a cantarem canções lavadinhas a cheirarem a alecrim e manjerona e a realidade a cheirar a águas residuais. O eufemismo cheira mesmo mal. Foi a imaginação prodigiosa desta gente que transformou o hino nacional num rap bancário ou no fado da tap. Enquanto o povo vai a pé a Fátima, eles vão de carro até São Bento. Estou em crer que “eles” é que estão certos.