610 - Pérolas e Diamantes: Nós queremos é consommé, porra...
É bom olhar com olhos de olhar para a frente. Sempre que nos é possível. Olhar de lado é má educação. A ironia é incompatível com qualquer tipo de empenhamento. Não perdoa. Nem pode. E mesmo se pudesse. A militância foi-se. Foi chão que deu uvas. Foi-se. Os ingénuos estão todos integrados. Os ingénuos e os hipócritas. Os poetas desintegraram-se. A vidinha submergiu-os. A banalidade, para o bem e para o mal, fascina-nos. Eu agora vivo de lugares-comuns, mas fora de contexto. A nossa memória é a do esquecimento. Há quem considere isso uma virtude. Eu julgo que é, sobretudo, cobardia. Crianças precoces são mitos. O imaginário esquerdista também é mistificação. Ou quase. Os que se querem projetar como figuras públicas não passam de anedotas. Está no seu feitio levarem-se a sério. As conversas da treta são muito bem pagas no nosso país. E até na nossa terrinha. E a cultura da treta, também. Mas a política dá-lhes a dimensão de coisa séria. Continuam os eventos do croquete, os desfiles dos bombeiros, as apresentações tipo agadoisó, as feiras das varandinhas. A sopa de pedra passou a ser servida, agora, como consommé. O sabor é parecido, muito parecido mesmo, mas o aspeto é diferente, mesmo muito diferente. E isso faz diferença. Toda a diferença. Sobretudo a quem come com os olhos. E emprenha pelos ouvidos. A verdade é que nos vamos perdendo no que se relaciona com aquilo que nos é pedido, enquanto munícipes. Afinal, o que é suposto nós fazermos? O efeito surpresa, em vez de nos adiantar na senda do progresso, vai acabar por nos atrasar. Isso dizem os cegos do Restelo que não conseguem ver os efeitos visuais projetados pela CIM. Claro que isso pouco importaria se a televisão transmitisse alguma coisa de interessante, mas não, o nosso serviço público dá-nos ainda mais croquetes, sopas insossas, música irritante e desfiles de bombeiros. Claro que com tanto contratempo e tanta contrariedade qualquer dia também vamos soçobrar enquanto munícipes. O nosso estoicismo tem limites. Apesar do entusiasmo ainda ser elevado, qualquer dia começa a esmorecer. E depois não há quem nos aguente. Esta coisa da nova política, da nova atitude e da nova moral tem já sabor a requentado. Oiço isto desde a minha juventude e as coisas não tomam caminho. E não é só porque os burros velhos já não tomam andadura. Os novos também já nascem com as pernas entorpecidas. A hortaliça murcha logo ao sair da estufa. E a que não murcha não tem sabor nenhum. É sempre tudo mais do mesmo. A verdade é que já não há pachorra para esta gente que todos os dias nos conta a velha história da autoestrada para o progresso, da riqueza e do bem-estar. Apareceu nas televisões, uma nova estirpe de catedráticos desavergonhados a apregoar técnicas que ajudam a avaliar e a pesar os fenómenos sociais e dizem mesmo possuir a ciência certa para criar a solução milagrosa que desculpa tudo. E olhem que não é feitio, é mesmo defeito. Estamos sempre paralisados entre duas certezas: a deles e a nossa. Ninguém pode errar tantas vezes. Acreditar neles já não é uma questão de fé, é mesmo burrice. Vivemos sob o jugo das dúvidas certas. E vamos todos caindo na astenia dos sentidos e no depauperamento dos princípios. Depois das promessas, começa tudo a cair, devagar, devagarinho. E o povo, para não chorar, ri com o seu sorriso amalgamado. E os que nos guiam, pobres coitados, sempre encafuados em reuniões onde se fala sempre mais do que se produz. Faz parte da tradição discutir-se muito e fazer-se pouco. Mas sempre se faz alguma coisa. De política o estritamente necessário, já dizia o velho Salazar. O resto é conversa e subsídios comunitários, vitelinha cozida com legumes e peixinho fresco grelhadinho. As finanças e a economia vão mal, mas podiam ir pior. Sempre assim foi e sempre assim será. A tradição ainda é o que era. Os portugueses só querem luxos sem trabalhar. Podem ser boas pessoas, mas são muito dados às festas e aos arraiais, às minis e aos copos de tinto. Não se pode ter tudo: folia e progresso, festas e desenvolvimento. Morra Marta, morra farta. Esta vida são dois dias. Nós queremos é ser felizes. Porra. Nós queremos é ser felizes. Porra.