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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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02
Ago10

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

21 – Depois de muita conversa revolucionária, boa para encher chouriços, aqueles doze devotos comunistas nevoenses abordaram finalmente o caso do Martins e o buraco na parede.

“Lindo serviço, o do camarada SUV”, comentou o Dr. Sebastião. Ao que o camarada trolha/empreiteiro respondeu: “Pelo menos tem-nos no sítio.” A camarada Teresa perguntou: “Tem no sítio o quê?”Ao que o camarada Dr. Sebastião aconselhou: “Moderem a linguagem camaradas.” O camarada trolha/empreiteiro respondeu: “Tudo o que é popular não nos deve ser estranho”. Ao que o Dr. Sebastião respondeu: “Pertencermos a um partido do povo não nos autoriza a ser malcriados. A boa educação não é um atributo da burguesia. Os marxistas-leninistas podem, e devem, ser tão bem educados como os outros cidadãos. A boa educação está acima da ideologia. De qualquer ideologia.” Ao que o camarada trolha/empreiteiro contrapôs: “Um caralho é o que está!” Então a camarada Teresa respondeu: “O camarada é um provocador. E malcriado, ainda por cima. Deus não aprova a má educação. E que eu saiba, o camarada Punhal pode não falar em Deus, mas também não profere asneiras nas reuniões do Partido.” Ao que o camarada Abílio retorquiu: “Apoiado, apoiado.” Ao que o camarada trolha/empreiteiro respondeu: “Cala-te Abílio, tu és sempre a voz do dono”. Foi então a vez do camarada funcionário local vir à liça: “Aqui o único autorizado a manda calar alguém sou eu, ou então o camarada suplente do CC. E informo os camaradas que no nosso partido todos temos direito a falar. Todas as opiniões contam. Mais a mais estamos na casa do Dr. Sebastião e os impropérios podem ferir a susceptibilidade da sua esposa, dos filhos e da sua querida mãezinha.”

Fez-se silêncio na sala. E, para serenar a ânimos, o Dr. Sebastião pediu à criada para servir um chá. O camarada trolha/empreiteiro pediu perdão e disse: “Eu essa merda não bebo”. O camarada suplente do CC admoestou-o com a voz da autoridade revolucionária de que estava imbuído após o último congresso: “Ou respeitas os camaradas, ou vou ter de te pôr no olho da rua.” Para conciliar as partes, o Dr. Sebastião sugeriu à criada: “Podes também trazer a garrafa de vinho e servir o camarada.”

Depois do intervalo para o chá, ouviram-se as opiniões dos diversos camaradas dirigentes locais e chegou-se à conclusão que se o tiro na parede tinha sido um acto irreflectido de um militante stressado, devia ser levado em linha de conta o facto de o Martins ser muito dedicado ao Partido, de ter cumprido com as orientações do CC e de, numa terra tão pequena e com uma organização concelhia tão exígua, o Partido não se poder dar ao luxo de expulsar um militante tão carismático como o Martins que impunha muito respeito entre os reaccionários mais reaccionários dos reaccionários. Ou seja, tudo ficou em águas de bacalhau.

Os camaradas homens, menos o Dr. Sebastião, que não alinhava em tainadas, resolveram ir comer um petisco à Choupana. Aí os camaradas funcionários explicaram, antes de alguém ter a ousadia de os admoestar por valerem à burguesia comunista, que é também tarefa revolucionária não hostilizar os burgueses que se dispõem a trabalhar com o Partido. O Dr. Sebastião, mesmo rico e aburguesado, tinha sido um grande antifascista, tendo sofrido muito nos quinze dias que esteve detido nas prisões do regime salazarista durante a grande noite fascista. E confessaram que o Partido, sigilosamente e ao nível superior, apoiava a postura dos camaradas da UEC e do Martins por terem tomates para defenderem o centro de trabalho, que é a casa dos comunistas. “E na nossa casa mandamos nós”, disse o camarada suplente do CC. Ao que o camarada trolha/empreiteiro retorquiu: “Aquela não é a minha casa. Tua pode ser, que aceitaste instalar a sede do Partido numa casa alugada em nome desse comunista de merda que é o Dr. Sebastião. E aqui não me mandas calar, caralho, aqui mando tanto como tu.” O camarada Abílio veio mais uma vez em defesa do camarada funcionário suplente do CC. “O camarada apenas tenta harmonizar as coisas, articular as diferentes posições, dar as orientações correctas…” Mas o camarada trolha/empreiteiro não o deixou acabar a ladainha: “Cala-te Abílio. Tu és o maior lambe botas que conheço. Tens espírito de cão de sacristia.” E o camarada Abílio, como bom camarada que era, calou-se e comeu mais duas ou três costelinhas de vinha d’alhos, sacrificando o poder da argumentação ao poder da concórdia entre camaradas desavindos. E, olhando para o camarada suplente do CC, começou a cantar “Grândola Vila Morena, terra da fraternidade…”, ao que o resto do grupo completou: “o povo é quem mais ordena, dentro de ti ó cidade…” e por aí fora. Mandaram vir mais uma garrafa de vinho para acompanhar três doses de moelas e continuaram a cantar noite dentro. E o entusiasmo posto na confraternização foi tanto que dali a pouco estava o bar todo a cantar a canção do Zeca Afonso; tanto a mesa dos comunistas do Alberto Punhal, como a mesa dos socialistas, que nestas coisas não se importavam de fazer alianças à esquerda, e dos esquerdistas que se intitulavam de comunistas, mas de um comunismo mais puro do que o do partido de Punhal, que era, nas suas palavras radicais, revisionista e lacaio da União Soviética. Apenas no momento de entoarem a Internacional é que o salão se dividiu, deixando os socialistas de fora, ou por vontade própria ou por puro sectarismo. Isso, não fomos capazes de apurar.

 

22 – A praça encheu-se de gente. O José nem queria acreditar no que os seus olhos enxergavam. Mesmo através da seteira existente no meio da muralha de jornais, o que se via do terreiro dava para pôr um comunista com os pêlos do corpo arrepiados, como quando somos observados por um lobo, mesmo que não o vejamos. Era um mar de gente a berrar “Portugal é do povo, não é de Moscovo”, ou “Comunistas para a Sibéria já”, ou outras provocações pelo estilo. Ali estavam meia dúzia de jovens comunistas atónitos encafuados dentro do Centro de Trabalho e com medo do povo. O mesmo povo que eles defendiam com unhas e dentes, mas que não lhes ligava nenhuma. O povo abominava os comunistas. Isso era evidente. E visível. Os rostos dos manifestantes evidenciavam raiva e determinação. O povo estava do lado da reacção, do lado da igreja, do lado da burguesia. O povo estava contra o povo. Isso era evidente. Mas se o povo estava contra si mesmo, que razões havia para se sacrificarem em nome dele?

Era um mar de gente a manifestar-se contra a ditadura comunista que estava para vir. Os comunistas queriam roubar-lhes as terras, as casas, o pequeno comércio e, principalmente, degolar os padres e queimar as igrejas. No rosto dos manifestantes, o José via sobretudo medo e raiva. Muita raiva. E ódio. Muito ódio.

Cada qual em sua janela, os UEC apontavam o olhar ora para os manifestantes ora para as caçadeiras carregadas com cartuchos de chumbo de caça grossa, que evitavam pegar. O alçapão que dava para as bombas encontrava-se aberto desde madrugada, quando souberam que a manifestação da reacção tinha como principal objectivo passar pela casa dos comunistas nevoenses, com o intuito de lhes demonstrar que em Névoa os comunistas eram meia dúzia de gatos-pingados.

Estes intrépidos militantes comunistas defensores do CT estavam firmemente decididos a disparar as suas armas e a arremessar as bombas, caso fossem invadidos. Bombas que, a caírem no meio do povo, iriam provocar uma matança digna de registo nos anais da história da cidade. José estava determinado a, mesmo não tendo tempo para fazer uma revolução a sério, pelo menos a fazer história. Escrever a história com actos corajosos de revolucionário marxista-leninista.

Mas o povo continuava a vociferar contra os comunistas, com ódio, com raiva, com determinação. O povo não gostava dos comunistas, tinha-lhes medo. E por isso clamavam vivas à liberdade, à democracia, ao pluralismo. O pluralismo burguês que o povo gritava apoiar era a principal arma para o subjugar. O parlamentarismo é a forma suprema da dominação capitalista. É uma ilusão democrática. O parlamentarismo burguês é uma farsa. O camarada Punhal tinha afirmado que Portugal nunca poderá ser uma democracia parlamentarista, uma democracia do faz-de-conta, onde convivem os revolucionários e os inimigos do povo. Onde convivem os filhos do povo e os filhos da puta. Os lobos e os cordeiros não podem viver lado a lado.

Mas lá fora o povo gritava, a plenos pulmões, o seu rancor aos comunistas. Chamam-lhes assassinos e ladrões. Por isso o José pensou, enquanto apontava a mira da caçadeira para um conhecido reaccionário nevoense, que o povo ainda não estava maduro para fazer a revolução. Mas ele estava. Sim, ele estava. Apesar de ser comunista apenas há seis meses, ele estava de alma e coração com o Partido, com a revolução e com o camarada Alberto Punhal, por quem mantinha uma admiração profunda. Para o José, Punhal era um novo Cristo. Sem ofensa para com o camarada Punhal.

E o povo, na sua santa ignorância, no seu vesgo obscurantismo, provocados por décadas de fascismo e por séculos de cristianismo, não tinha verdadeiramente a culpa. Os reaccionários e os burgueses é que a tinham. E os padres. O povo não tinha culpa. Os culpados eram os outros, que não sendo do povo, mas fazendo-se seus amigos, o tentavam manipular, contando-lhes falsidades acerca da União Soviética, o Sol do Mundo, o Farol da Humanidade, a Terra da Liberdade.

Mas o povo continuava a gritar “Comunistas para a Sibéria, já”, como se isso fosse algum castigo. A Sibéria Soviética era fria e mais nada. A Sibéria czarista é que tinha sido uma prisão imensa. Agora essa vasta região era apenas fria, mas aquecida com o fulgor da revolução proletária. Agora era terra de liberdade. Mas os reaccionários mentiam com o propósito de enganar o povo. E o povo, na sua santa ignorância, acreditava mais nos reaccionários do que nos comunistas. E isso entristecia o José. Por isso se sentia capaz de matar. Agora era bem capaz de disparar para calar a voz da reacção. Ele que apenas tinha disparado espingardas de chumbo para matar pardais, sentia-se um revolucionário capaz de alvejar o senhor Felisberto, o dono da mercearia do seu bairro, que sempre ganhou a vida a roubar no peso da massa, do arroz e do feijão que vendia a granel. Ou de alvejar o Padre João, que gritava alto o nome de Deus e o do Papa, como se fossem a salvação do mundo. Os filhos da puta. Quem poderia salvar o mundo era Marx e Lenine. E, claro, o camarada Punhal.

O povo continuava lá fora a gritar e bem alto o seu ódio aos comunistas. Alguns reaccionários, mais corajosos, incitavam alguns companheiros a invadirem o CT. Era preciso cortar o mal pela raiz e expulsar os comunistas da cidade. José apontou a caçadeira. Os outros seus companheiros revolucionários fizeram o mesmo. O Martins foi buscar duas bombas feitas com pregos e cacos de pote. Os reaccionários já ali vinham. José benzeu-se e pediu perdão, não a Deus, mas sim a Alberto Punhal. Depois os seus dedos pousaram suavemente no gatilho da caçadeira. Apontou para na direcção do padre João e fez mira ao centro da testa. Hesitou. Baixou os canos da espingarda na direcção do coração. Não pretendia falhar.

De repente, o Martins, que se preparava para abrir a porta e lançar as bombas, gritou: “Alguém vá atender o telefone, que eu não posso”. Foi o que salvou o Padre João de ser a primeira vítima da revolução em terras de Névoa.

José foi atender, pois sabia que não atender o telefone podia ser uma enorme transgressão à militância revolucionária. O telefone do CT era uma das armas mais prestigiadas na actividade revolucionária do dia-a-dia.

Era o Dr. Sebastião a informar que estava a chegar um pelotão de soldados do MFA para defender o CT do Partido. O comandante do quartel tinha recebido ordens expressas de Lisboa para disponibilizar um pelotão de SUV’s voluntários para defender a casa dos comunistas. 

Ficou assim a luta adiada. Os soldados chegaram, dispuseram-se em formação de defesa, engatilharam as G3 e esperaram, sorridentes, que as coisas acalmassem.

O povo continuou a gritar a seu ódio aos comunistas. Os comunistas continuaram dentro do CT a olhar os reaccionários através do ponto de mira das suas caçadeiras. E o Martins, com calma e perseverança, foi esconder de novo as bombas no esconderijo do bar. “A revolução é como Roma e Pavia, não é para se fazer num dia”, pensou. E pensou bem.

Durante vários minutos, os manifestantes continuaram a exteriorizar o seu ódio e a sua raiva aos comunistas de Moscovo e aos seus lacaios portugueses e a gritar bem alto a sua vontade de defender a liberdade e a democracia. Vendo que a manifestação tendia a demorar mais tempo do que o previsto em frente do CT do Partido sem se definirem os campos, o capitão do pelotão incumbido de o defender, mandou disparar uma rajada de metralhadora para o ar e a manifestação começou a andar para o local de onde tinha partido. E, o que começou em paz terminou em paz, para desgosto das partes envolvidas.

“E palavras leva-as o vento, lá diz o povo. Mas o povo não sabe muito bem o que diz. Senão não tinha vindo para a porta do partido que o defende gritar impropérios e atoardas que não o dignificam. O povo tem de ser educado. Tem de ser esclarecido. Um povo que não é esclarecido não é povo. O povo para ser povo, para ser verdadeiro, tem que estar ao seu lado. O povo tem de estar ao lado do povo. O povo tem de estar ao lado do Partido. O povo não pode estar contra o povo. O povo não pode estar contra o Partido. Porque o Partido é o povo. O povo é que pode não ser o Partido. Mas sendo o Partido o povo, mesmo quando o povo não está com o Partido, está o Partido com o povo. Porque o Partido é que é o verdadeiro povo. Porque o povo que não está com o Partido não é povo. Mas o Partido é o povo. É o povo do povo. O povo verdadeiro. E esse povo, o verdadeiro, é que é o Partido. O Partido verdadeiro. O povo. O Partido. O Partido do povo. O Povo do Partido. O Partido”. Isto foi o que o José pensou antes de adormecer profundamente em cima dos bancos onde os militantes se sentavam nos dias de reunião.

 

23 – Apesar da grande desilusão revolucionária que para si constituiu a grande manifestação popular contra o comunismo, contra o Partido e contra Punhal, na qual, resumidamente, o povo esteve contra o povo, José adormeceu como uma criança depois de ter apanhado os seus pais na cama a copularem com alguma intensidade erótica. Com o coração apertado e com o ciúme à flor da pele, desembocou num sono pesado. Apesar da enorme desilusão, sonhou. O cérebro de um rapaz, mesmo que ele seja comunista, portanto um filho dilecto do povo que o originou, é uma máquina imprevisível de imaginação, um delicado instrumento de recriação, ficção, manipulação e compensação. Por isso o José sonhou com os seus tempos de menino e moço quando era ainda um instrumento dócil nas mãos dos adultos, especialmente nas do padre Zé, nas da sua professora primária e, sobretudo, nas dos seus pais. Ou melhor, nas da sua mãe, a Dona Rosa, que era excessivamente manipuladora. Era capaz de o beijar com muito carinho, para, logo a seguir, o encher de porrada, dar-lhe chapadas ou fustigá-lo com o cinto do marido. Bastava arreliar-se com os vizinhos a pretexto de uma qualquer insignificância, para vir descarregar a fúria no José. O seu primogénito era o pião das nicas da família Ferreira. O pai chegava tarde a casa, o José é que as pagava. Por vezes, quando o pai se deixava ficar pelos cafés a conversar, a beber e a fumar, logo a Dona Rosa o mandava em busca do pai. José dava sempre com ele, o que não era nada difícil. O pai fazia-lhe uma festa na cabeça, oferecia-lhe qualquer guloseima e continuava a beber e a fumar e a falar com os outros homens também eles peritos na velha arte do convívio masculino. Por isso falavam sobre nada com uma subtileza argumentativa verdadeiramente digna de registo. Falar sobre nada durante horas, meses e anos seguidos, com intervalos para o trabalho e para as refeições, era uma velha arte cultivada nas pequenas vilas e cidades de província que merecia um estudo sério e aprofundado. O pai do José, o guarda Ferreira, bebia apenas vinho tinto. As outras bebidas tinham a particularidade de lhe provocarem náuseas e vómitos. E fumava. Fumava imenso. E bebia outro tanto. Bebia aos golinhos e fumava de forma peculiar. Chupava o fumo do cigarro sem filtro, a seguir expelia metade do fumo da chupadela e só depois é que enfiava para dentro dos pulmões o resto da nuvem fumarenta. Por isso, sempre que o José se lembra do pai, a sua imagem está sempre envolta em fumo. O guarda Ferreira é um rosto fino e seco, sulcado de rugas e com uns lábios grossos a abrir e a fechar, entaramelando palavras incoerentes, que, apesar da condição anárquica com que são proferidas, possuem a rara qualidade de fazer sentido aos ouvidos de quem as escuta, se, e só se, estiver habituado a descodificar aquela linguagem de bêbado cansado. Quase sempre, enquanto espera pelo pai, se senta numa mesa perto da televisão do café e vê o telejornal, ou um que outro programa cultural, tudo a preto e branco, que são as cores do regime. Alguma razão tinha de haver para, no meio daquela família pobre, o José ter saído tão culto. Assistiu a muitos programas de Vitorino Nemésio, apreciando o seu jeito de ciciar as palavras e de as pronunciar num contínuo sonoro musical. E foi isso o que conservou. O que já não é pouco. Sempre é melhor trautear um frase de Vitorino Nemésio, mesmo que pronunciada na castiça forma de cantar em inglês sem saber sequer uma única palavra desse dialecto universal, do que uma linha melódica da “E Viva a Espanha”, que era a cançoneta que mais se ouvia nas festas e arraiais de Montalegre. Também viu e apreciou os programas de João Villaret que, com as suas bochechas e os seus olhos a saltar e a tremer de prazer (como mais tarde contemplaria em Ary dos Santos), e na sua voz melodiosa e penetrante, declamava a marcha popular e triunfal do lirismo campestre, “tocam os sinos na torre da igreja”. Por vezes os programas tocavam-lhe tanto que ele sentia o seu pequeno pénis a ficar rijo, como quando por vezes acordava com vontade de ir urinar e não o fazia porque o penico estava longe e o frio fora dos cobertores era imenso. Com aquele frio até o tesão do mijo se desvanecia de forma incrível.

Foi naquela televisão que assistiu às cerimónias fúnebres de Oliveira Salazar, enquanto o seu pai bebia e fumava com os amigos como se quem tivesse morrido fosse o Branduras, um criado de servir a quem um porco tinha comida o pénis quando era bebé, que era um homossexual muito parecido com o João Villaret, só que mais pobre e acanhado, mas que, apesar de não recitar poesia, sabia tratar da horta e do quintal, sachar as batatas e arrancá-las, semear e ceifar o centeio, cortar com o machado pinheiros e carvalhos, arrancar torgos, encontrar os míscaros, pitar a lenha, cozer batatas, guisar carne e fazer um caldo com folhas de couve ripadas com unto que era um regalo, lavar a roupa, limpar o pó dos móveis, varrer, lavar e encerrar o chão das casas das famílias remediadas da vila e ouvir e calar impropérios indignos dos homens, que são muito mais capazes de tratar de afagar um animal, de bestializar uma cabra ou uma burra, do que respeitar um homem que o infortúnio fez diferente.

 

24 – O guarda Ferreira costumava demorar muito até se decidir ir para casa. Preferia de longe escutar os amigos dos copos a dissertar sobre nada e sobre coisa nenhuma, do que ouvir os impropérios da mulher sempre a criticar-lhe a inclinação pelo vinho e pelo cigarro na companhia de bêbados e debochados, em vez de estar em casa a jantar com a família. A mãe do José era uma mulher conflituosa, possessiva, de relação difícil. Para ela, quase todas as mulheres eram putas. Especialmente as mais novas e bonitas. Todas as semanas arranjava ao marido uma nova amante. E insinuava que era essa a principal razão porque não gostava de ir para casa fazer companhia aos seus, comer a comida que ela preparava no pote, aquecer-se à lareira, ensinar as contas aos filhos e rezar o terço antes de irem para a cama.

Mas o guarda Ferreira demorava sempre o tempo de mais um copo e de dois ou três cigarros antes de se decidir ir para casa. O José também se deixava ficar ali na modorra a ver a televisão, a comer um bolo e a beber um Sumol. Estava visto que nenhum dos dois apreciava os jantares em família. E como quase todas as noites a sua mãe lhes pregava um sermão, a um porque só bebia e fumava e a outro porque não estudava e era incapaz de ir buscar o seu pai e trazê-lo para casa a horas de cear; tanto o guarda Ferreira como o seu filho não se moderavam em adiar sempre mais um pouco a hora de recolher.

Muitas vezes, antes de chegar a casa, o pai do José amparava-se na esquina da casa do Padre Zé e vomitava o vinho que tinha bebido. Depois sentava-se num muro que havia por ali perto e fumava mais um cigarro. Falava pouco com o filho, mas apreciava a sua companhia, porque o José não o censurava, nem sequer com o olhar. Por vezes, pai e filho olhavam para o céu estrelado. Nessas alturas o guarda Ferreira fazia sempre o mesmo comentário: há tantas estrelas no céu, meu filho, que até dá que pensar qual a razão da nossa existência. Então José olhava para o rosto do pai, sempre um rosto triste, e murmurava: pois é pai, a vida é fodida. Com um sorriso nos lábios, o guarda Ferreira perguntava ao filho onde tinha aprendido pensamentos tão profundos e a dizer asneiras na presença de um guarda-republicano.

Custava-lhes sempre ir para casa. Mas os últimos metros eram uma autêntica via-sacra. Abriam o portão a custo, atravessavam os dez metros do pátio como quem transporta um saco de batatas às costas, subiam as escadas como se elas os levassem à forca, abriam a porta de casa como se fosse a da prisão e por fim lá descortinavam a mãe, a temida Dona Rosa, como se fosse uma loba no cio, a rosnar de raiva, a ameaçar e a ferir os seus com palavras cruas e duras. Por vezes fazia que desmaiava, pretextando um ataque nervoso. Punha tudo em sobressalto: filhos, marido, vizinhos e até o cão. O Leão era o único que ainda se surpreendia com o teatro que ela protagonizava, o pobre inocente. O cão era-lhe fiel e dedicado. Ela batia-lhe muito, em excesso. Aquela mulher fazia tudo com excesso. Batia no Leão com uma vergasta. E ele, que era um cão possante, apanhava a porrada sem se mexer, gania como que a pedir desculpa, e, no fim, chorava, ia lamber-lhe as mãos e deitava-se aos seus pés, como que a protegê-la. O Leão era, por isso, o único que recebia o carinho da mãe do José. Talvez porque o tratamento resultava no cão, ela estendia-o aos filhos para ver se obtinha o mesmo resultado. Ao marido, na impossibilidade física de o fustigar com a chibata, vergastava-o com palavras azedas, sujas, impróprias de uma mãe e mulher.

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