625 - Pérolas e Diamantes: Empecilhos
Edgar Faure disse que noventa e cinco por cento das questões políticas são questões de suscetibilidade pessoal. Os cinco restantes, digo eu, são questões tribais. Ai esta pequena dor de ser português! De não possuir visão própria, nem noção de destino e de fazer alarde da sua preguiça distribuída por todos os momentos da sua vida. Tudo é tão banal que até dói. Não é por acaso que os pacóvios elegeram como canção nacional o fado, que, bem vistas as coisas, tal como o tango, nasceu nos prostíbulos. E não é defeito, pois claro, é mesmo feitio. Quem quiser levar este país a sério só pode enlouquecer. Temos sempre a sensação de que estamos permanentemente onde não devíamos estar. E olhem que não é inquietação, como cantava o José Mário Branco, ou desassossego, como escreveu esse poeta idolatrado até à náusea, Fernando Alberto Campos Etecetera Pessoa, é mesmo falta de jeito. Nós não fazemos parte do Universo, mas do seu segredo, iluminados pelas procissões, maravilhados pelas festas e pelo foguetório, com um sentido prático para o improviso que me leva a pensar que esse é o quarto segredo de Fátima. Apenas um povo como o nosso, que reza mesmo enquanto come, é capaz de criar um fosso quase intransponível entre o português falado e o português escrito. Nós somos assim, mas não é por mal. Nascemos de um milagre fugaz mas ainda aqui estamos para testemunhar o êxito dos outros. Os portugueses, honra lhes seja feita, apreciam-lhes a exigência e até a ela se submetem com um sorriso na cara e uma vénia bem composta. A maioria nasce na província e depois vai morrer no exílio lisboeta. Todos guardam na memória a mãe e o pai a vê-los partir de comboio enquanto a restante prole diz adeus do cais da estação. No fim da adolescência ouvem música medíocre e não revelam nenhum respeito pela literatura clássica, ou outra qualquer. Os portugueses não gostam de teimar nas vocações, no trabalho e no estudo, apostam mais na facilidade. O que eles querem é ser felizes, mas nem nisso acertam, apesar de serem viciados em raspadinhas. Apreciam memórias passageiras, uniformes, medalhas, emblemas e disfarces carnavalescos. Dão mais crédito à autoridade do que à razão, com o resultado que todos sabemos. A verdade é que o humor dos portugueses é tão requintado que a parte que o ouve, ou o lê, nem sequer o entende como tal. Os pais foram fascistas, os filhos comunistas e os netos são uns descrentes que bebem Coca-Cola Light, café descafeinado, água das pedras sem gás, cerveja sem álcool e até se dizem sociais-democratas sem orientação definida ou liberais praticantes de yoga. O passado entristece-os, o presente aborrece-os e o futuro será o que o Deus do improviso lhes oferecer. Agora a cultura vem em camadas como os bolos de bolacha. A liberdade deixa alguns imaginarem a falta dela. São os que dizem apreciar o mergulho em apneia. Claro que tudo isto podia ter sido pior, ou também podia ter sido melhor. Mas foi o que se pôde arranjar. Nem coisa que se veja, nem obra que se despreze. E por aqui andam grandes artistas a produzir obras que vendem a parentes pobres por preços simbólicos, que compensam pela admiração e pela simpatia genuína. Do mal o menos. Obras onde sopra o vento poético. Do artista fica a obra e o sentido explícito de quem acredita naquilo que faz. O resto pouco importa. Onde põem a lua também põem a luta e o sol algum dia brilhará para todos nós. Há lá ideia mais bonita! Quando estão por perto, todos vivemos em festa. Apesar de não perceberem o mundo, entendem as pessoas. E isso é o que importa. O que interessa é a revolução das almas. Nesta gente admirável não existe qualquer tipo de esforço pedante para se impor ou exibir. São como são e isso basta-lhes. Acreditar no parto sem dor é uma ideia bonita. Todos os compromissos implicam incoerências. Só a morte define a distância definitiva. A sobreposição de critérios acaba por complicar sempre as coisas. Então como conciliar privilégio e justiça? Pois, para acabar por hoje com este desdizer, afirmo alto e bom som que não é possível. A luta pela igualdade não é uma vocação. É uma necessidade. E a generosidade, caros amigos, é um empecilho. Os compromissos são difíceis, mas não existe outra forma de viver em democracia.