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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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24
Abr23

632 - Pérolas e Diamantes: Grito (excerto I)

João Madureira

 

Apresentação3-2 - cópia 5 (3).jpg 

Aaaaaaaaaaaahhhh!!! Ai este povo de espírito basbaque, envolvido em utopias de serapilheira, nevoeiro e reis-meninos, com alma de feirante e de bobo da corte. Ai dele. Ai! Ainda não vai lá muito tempo em que os quintais nas traseiras das casas estavam sempre cheios de fraldas a secar, bibes manchados e de andarilhos de verga onde se metiam crianças para aprender a andar, parecendo os robertos dos teatrinhos ambulantes, que víamos nas feiras, com as suas vozes de falsete, caricaturando o diabo, o padre, o sacristão maila sua mulher, divertindo o povo povinho povo, que se punha a gargalhar de forma histriónica. E então que dizer dos burguesinhos provincianos, gente sem brio, que morriam por comer muito e mal, esganados em pequenas hipotecas, sempre à espera que lhes saísse a lotaria, frouxos no trabalho e na palavra dada, generosos nas dúvidas, sempre divididos entre o amor e o ódio, com um saudosismo de caráter, responsável pelo nosso atraso atávico e estrutural, sempre a atafulhar a igreja aos domingos e dias santos. Sempre a ajoelharem-se e a levantarem-se. Sempre de mãos postas para a fotografia, para o olhar do senhor abade e para a cruz do altar. Vivendo em casas de escadas com degraus estreitos, com a luz bafienta das claraboias a alumiar os patamares. As mulheres pareciam não ter idade, sempre dentro de casa com o seu ar de amas-secas, com os seus aventais estampados a cinzento, meias grossas e chinelos. As raparigas, algumas delas, eram belas, à sua maneira, tinham o olhar doce, pele clara, usavam laços e ganchos, nos seus cabelos soltos. Gostavam de chamar a atenção, mas mantinham-se reservadas. Pareciam imprudentes, mas não eram levianas. Viviam encarnando personagens de romances baratos em edições de cordel, sem saberem que isso se paga caro na vida real. Sempre a espreitar os cantos para ver se não estaria por ali um sapo, daqueles que se transformavam em príncipes. Mas por ali apenas apareciam ratos que as punham a gritar como se fossem loucas. Tinham ternura pelas coisas que não envolviam, nem invocavam, o sentido do humor. Gostavam de palhaços e das suas palhaçadas infantis. Riam-se da inocência dos outros e da sua própria inocência. Já o povo baseava a sua vida e o seu conhecimento nas riquezas que lhe eram essenciais à sua pobre vida: o pão e a água. Carne e vinho quando fosse possível. E os homens, do povo, claro, ali estavam para servir. Viviam entre a fome e a pouca sorte. A solidão fazia-os chorar. Por isso mentiam a si próprios. Um dia ainda iriam ter esperança de ter esperança. E ali permaneciam, parados, esgotados, no extremo do tempo. Quando não compreendemos aquilo que nos rodeia, passamos a odiá-lo. Existiam então muitas leiteiras, vendedoras de sardinha com as gigas de vime na cabeça, magalas com cheiro a mofo das casernas, com um raminho de alecrim na orelha, donas de pensões, que eram fêmeas inquietas, e criadas sempre vestidas com o seu casaquinho de malha. E trolhas e carpinteiros e guardas e carteiros, que confraternizavam nas tabernas bebendo copos de tinto e comendo bolos de bacalhau ou carapaus de escabeche. Aqui chegava-se pelas estradas de pó, para ver os campanários e assistir às procissões. Era tudo uma grande tristeza provinciana. Uma enorme pobreza provinciana. Uma piedosa pobreza franciscana. Muitos rapazes, e algumas raparigas, dos concelhos limítrofes, vinham estudar para a cidade e alojavam-se em casas comandadas por mulheres lúcidas, de trança enroscada na coroa da cabeça, que cobravam em géneros, dinheiro contado ou de ambas as formas. Era normal, os mais gandulos, andarem de mãos e pés gelados, cheios de frieiras, beberem copinhos de jeropiga, enquanto fumavam pequenos cigarros sem filtro. Era também normal desaparecer dos seus baús a marmelada, as compotas, o queijo e o fumeiro que os seus pais lhes mandavam para enganar a fome a meio dos estudos. E nos liceus, ou colégios da região, a juntar à desgraça dos professores austeros e mal preparados, a fazer-lhes companhia nas salas, lá estava a bandeira pátria, um retrato do papa, um do Salazar e outro do Carmona. E também um Cristo devidamente crucificado para ainda meter mais dó. A grande maioria dos jovens ficava nas aldeias a guardar cabras e ovelhas, bezerros, vacas e bois. Na vila, a rapaziada era constituída por pequenos valdevinos, caixeiros, trolhas, ou aprendizes de lavrador. O mal passivo corrompia mais do que aquele que era deliberado. E usava-se a violência para lutar contra o absurdo.

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