666 - Pérolas e Diamantes: Confusões
Eu confuso me confesso. Já não consigo distinguir os loucos dos sábios, os reis dos mendigos, os republicanos dos monárquicos, os refinados dos grosseiros, a realidade da fantasia, o sagrado do profano. Nem diferenciar os populistas dos progressistas. Nem a fantasia dos factos. Nem destrinçar notícias de fake news, chineses de tailandeses, muçulmanos xiitas de sunitas, católicos de ortodoxos. Nem as teorias da conspiração da conspiração das teorias. Nem o comunismo do fascismo. Nem o socialismo da social-democracia. Nem a água benta da água da torneira. Nem a presunção de culpabilidade da presunção de inocência. E muito menos os defeitos das qualidades. Nem sequer consigo enxergar a fronteira entre ideólogos e spin doctors. Nem distinguir o criador de factos políticos Marcelo Rebelo de Sousa do seu avatar Marcelo Rebelo de Sousa presidente da República. Também faço um enorme esforço para distinguir a direita da esquerda e um esforço ainda maior para detetar a linha divisória do centro-esquerda do centro-direita. E então que dizer da delimitação da fronteira entre os populistas de direita e os populistas de esquerda. Confesso que tenho também dificuldade em distinguir os algoritmos da verdade e da mentira e as contradições das idiossincrasias. Já não sei se é a realidade que faz a informação ou é a informação que faz a realidade. Já não são os políticos que contratam técnicos. São os técnicos que contratam os políticos. Os engenheiros do caos aperfeiçoaram os algoritmos de uma forma quase ideal. Daí a democracia se estar a afundar. São Francisco de Assis já não fala aos animais do monte, utiliza a internet. Transformou-se numa espécie de Isaac Asimov, um dos pioneiros da ficção científica. São os algoritmos que fazem acontecer as temíveis máquinas políticas do populismo. O que não é difícil, pois os pretextos são diversos e evidentes: corrupção dos políticos, abuso das grandes empresas e da banca privada, precariedade no delirante esquizofrénico mundo do trabalho. Giram os tronados lá fora, enquanto cá dentro a panela de pressão começa a assobiar. Vamos ver quanto tempo demora a tampa a saltar. A arena tradicional do jogo político implodiu. Nem é preciso apanharmos os cacos. O circo é virtual, vive da internet. Nele atuam sobretudo jovens sensíveis aos temas do ambiente e do emprego, distanciados da política tradicional e indignados com o esbanjamento dos recursos e da riqueza ligados à corrupção. Podem ter vindo da esquerda, mas atualmente são sobretudo liberais sem partido e sem orientação ideológica específica. Muitos pensam que hão de conseguir arrebatar o poder das mãos de uma casta de políticos profissionais e entregá-lo ao homem comum. Mas a internet é, sobretudo, um instrumento. Eles não controlam os algoritmos. Eles são os algoritmos. Quem manda são os mentores do processo do capitalismo da vigilância que, dessa forma, captam uma quantidade enorme de dados para os utilizarem para fins comerciais e políticos. O Grande Irmão está sempre a vigiar-nos. Os mais entusiastas dos algoritmos são principalmente jovens sem qualquer experiência política ou profissional que fazem funcionar a rede e também podem ser manobrados a partir de cima. Criam avatares na vida real. Eles próprios são avatares que existem sob determinadas condições e podem ser eliminados de um momento para o outro, com o simples movimento de um dedo em cima do teclado do computador. Os partidos nascidos desta forma, angariam apoio em todo o espaço nacional, são populares tanto a norte como a sul do país, colhem apoio tanto de jovens como de idosos e captam votos tanto da esquerda como da direita. Partidos que nascem na internet são muito tentados a desenvolver as suas experimentações políticas. Waldo (Black Mirror), meio a brincar, põe o dedo na ferida quando afirma que a democracia se transformou numa piada e que já ninguém sabe lá muito bem para o que serve. Nem a quem serve. Mas todos vamos conhecendo quem se serve dela em proveito próprio. Claro que é o sistema que se revela absurdo. Mas foi ele quem construiu escolas, hospitais e estradas. Todos sabemos que quando ascende ao poder, o antissistema se transforma no novo sistema, em tudo semelhante ao velho sistema. E deste círculo vicioso ninguém conseguiu, até hoje, sair.