679 - Pérolas e Diamantes: Depois dos safanões...
Depois dos safanões e das melodias insinuantes, dos combustíveis argumentativos, das lamúrias, das diferenças e das indiferenças, das intenções políticas, louváveis, e dos instrumentos de composição, a monotonia povoa-nos os enganos. E os desenganos. A ironia é amarga. Toda a ironia é amarga, mas pode ser eficaz. Por vezes perdemos o medo e ganhamos ira. E outras adquirimos a ira e perdemos o medo. Temos de inverter a equação tradicional. Claro que é muito difícil conciliar os filmes de Don Siegel com a ligeireza antinazi de Música no Coração. E eu à procura do Tenente Blueberry. Muitas vezes o li em tardes de chuva com o gosto, ou o desgosto, de me enfiar em labirintos. E eu sem bússola. Há sempre encontros… bons e maus. Bons ou maus. Vivam, então, os lugares-comuns do idiotismo. A revolução era viciosa mas, caros amigos e inimigos, a contrarrevolução é ainda pior. Daí o triunfo das drogas sintéticas em detrimento das outras. O último moicano ainda faz parte dos meus pesadelos de adolescente. E o Errol Flynn aos pontapés ao Rato Mickey. Corin Tellado ainda vai ser tese de doutoramento elogiosa de algum adulador de Philip Roth. A vingança serve-se fria como um bife saído do frigorífico de um talho kosher ou halal. E os cobóis e os índios navajos a dançarem e a baterem palmas e a darem beijos distraídos uns aos outros. E o tenente Blueberry a tocar o seu clarim para espantar a caça. Ou nem tanto como isso. Melhor é colecionar cães de porcelana. São chiques e não fazem chichi. As ditas novas vagas não passam de velharia reciclada. Quanto ao que a música diz respeito, vendo, ou melhor, ouvindo o que por aí se toca e grava, lembro-me amiúde das palavras do velho poeta inglês Coleridge (1772-1834): “Os cisnes cantam antes de morrer – e não seria mau / Se certas pessoas morressem antes de cantar.” Há gente entendida que diz que alguma música é melhor do que soa. Claro que questiono tal afirmação, mas quem sou eu para discordar. Verdade seja dita, sempre desconfiei dos apreciadores de Marino Marini. E lá estão os de sempre a obedecer ao espírito da manada. A mediocridade é disciplinada. Toda esta modernidade de pacotilha está em ponto-morto. Não atropela mas também não deixa avançar. Todos estamos à espera que a procissão passe. Os andores são os de sempre, luzidios e sem pó visível a olho nu. Então que avance. Vivam os meias-tintas. Os calimeros desfilam no fim para fechar o préstito. Eles e os escuteiros enfiados dentro dos seus calções, de lenço tabaqueiro ao pescoço e com aquele chapéu que é o conceito mais aproximado de desaprendizagem ritual. E o Corpo de Deus desfila sob o toldo da indiferença. Há pessoas que parecem lacrimejar, outras lembram a solidão, mas provavelmente são felizes. Eu já não sei se a fé está nos textos ou nas pessoas. Mas também a quem é que isso interessa? O aquecimento global é geral. E olhem que o problema não se resolve com rezas ou com atentados realizados com bolas de tinta contra as paredes ou contra os casacos e as camisas dos ministros. E eu a agarrar-me, como posso, aos pontos de interrogação. E os outros a safá-los com borrachas íngremes e a colocarem no seu lugar pontos finais. E parágrafo. Tudo incerto como se fosse certo. Tudo mentira como se fosse verdade. Sempre a apostarem na colocação de freios, como se fosse preciso travar logo no momento do arranque. Pode parecer estranho, mas muitas vezes não conseguimos saber se aquilo que vemos é aquilo para onde estamos a olhar ou é aquilo que queremos ver. Dizem que há um ditado, provavelmente apócrifo, que diz “lá por eu ser paranoico, não quer dizer que não exista por aí uma conspiração contra mim”. Pode ser presunção minha, mas o tom é suave. A mim não me afetam as retaguardas morais. Claro que os conspiradores atualmente parecem pacificados, domesticados, e até bons homenzinhos. É mesmo divertido vê-los disfarçados de santos populares. Antes tocassem realejo e pintassem paredes, como antigamente faziam. Agora andam de bicicleta e de canivete no bolso para descascarem as maçãs biológicas que compram na feira das varandas. A verdade é que para gente tão ideológica falta-lhes o essencial, a ideologia. Nos tempos que correm, até os lugares-comuns são preguiçosos.