680 - Pérolas e Diamantes: Esta vida de reformado...
Um dia destes dei por mim a pensar o que as pessoas andariam a pensar. Talvez em assuntos pouco importantes. Imaginava-as concentradas. Muitas inocentes. Outras convencidas. Muitas cheias de certezas. Outras repletas de incertezas. De facto, a maioria delas é faladora. Mas poucas pessoas são fazedoras. A vida, na maior parte do tempo, é uma grande chatice. Muitas conversam, porque pensam que têm algo de interessante para dizer, mas a maior parte resmunga, porque não sabe fazer outra coisa, e também por causa da economia e dos políticos em geral. Depois pensam, as citadas pessoas, nos fantasmas das coisas passadas e nas oportunidades perdidas e… A verdade é que comecei a ficar aborrecido e tentei deixar de pensar. Mas não consegui. Depois tentei deixar de conseguir. Mas também não consegui. Qualquer altura é boa para tomar uma atitude. Mas a verdade é que o frio não ajuda. Tento então pensar na Revolução Francesa (de facto, eu tenho um pouco a mania das revoluções) e tentar entender as suas causas e, ainda, tentar perceber o século em que se deu. Como música de fundo oiço a peça minimalista das raquetes de ténis a bater na bola de um qualquer jogo transmitido pelos canais desportivos. O interesse é mínimo e a chatice máxima. Mas não me queixo. Esta vida de reformado está a dar cabo de mim, raparaparaparaparaparaparim, esta vida de reformado está a dar cabo de mim, raparaparaparaparaparaparim, hey… Por vezes saio de casa de bom humor e regresso a ela de mau humor. Outras saio dela mal humorado e regresso com um humor do caraças. Há dias assim! Depois lá torno às rotinas e, por descuido ou pura distração, volto a encontrar-me com aqueles que ou falam de impostos ou de política. Finjo então pressa ou tarefa inadiável e dali me vou até onde possa descansar a paciência. Homem prevenido vale por dois. Há gente erudita que enquanto fala se assemelha aos gatos mansos depois de enfardarem meia dúzia de canários. Também existem pretensos fidalgos que consideram que o passado é muito mais importante do que o presente. Estes, diga-se em abono da verdade, são os que possuem um mau feitio incomodativo. Como diz o povo, uns pintam a manta e outros o mesmíssimo Diabo. E por aqui andamos todos a fingir entusiasmo. E a discutir os infortúnios do mundo. E as ementas saudáveis. E o aquecimento global. E os direitos dos animais e dos LGBT+. Nestes debates aparecem sempre aqueles que fazem perguntas idiotas sobre assuntos importantes e também aqueles que fazem perguntas bastante sensatas sobre assuntos idiotas. É a vida. Muitos deles são dos que ficam com uma expressão vazia por não terem encontrado interesse ao lerem Candide ou O Deus das Moscas. É sempre difícil mostrar-lhes como a literatura pode fornecer ferramentas para a vida. Por vezes põem-me de lado. Por vezes é bom ficar à parte. Acusam-me de mudar de ideias. Eu digo-lhes que só muda de ideias quem as tem, caso contrário é impossível. Já deixei de tentar entender o mundo. Bebo o meu chá em silêncio. Penso nuns e noutros e reconheço que as várias posições e incongruências têm os seus atrativos. E aqui estou, no quarto de um hotel com vista para o mar e para uma praia com pouca areia. A aborrecer-me. Os meus pensamentos começam a andar em círculos. Não admira que me sinta tonto. Tudo na vida é uma questão de tempo. Até a morte e a metafísica. E o colesterol e a hipertensão e a diabetes e os problemas nos joelhos. Todos nós rodeados de turistas que olham fixamente para as montras ou visitam as igrejas e fotografam tudo o que mexe e remexe. A verdade é que esta vida de reformado me tem provocado as mais variadas emoções. Acho que agora percebo melhor o pacifismo de Tolstói, o budismo, a infância, as montanhas russas, Woody Allen, as mudanças filosóficas e mesmo as opiniões incertas. Até já encontro significado em algumas abstrações. Podemos não ser simpáticos uns para os outros, mas somos deferentes. Deferentes e indiferentes. Nós conseguimos combinar bem ambas as coisas. Temos que abrandar a decadência para um ritmo que nos permita acompanhar o presente sem desesperar. E tentar perceber as ameaças globais às florestas tropicais, à vida selvagem, às baleias, aos ratos-de‑água, aos polvos bebés, etc. E tal. Agora temos de nos assegurar que somos pessoas higiénicas, não alcoólicas, não racistas, anti-homofóbicos, admiradores dos Beatles. Mas, que Deus me perdoe se é que pode, ainda não consigo distinguir lá muito bem um sherry seco de um martini extrasseco e ambos e dois de um porto tawny branco extremamente delicodoce. Depois da experiência, vou precisar de um exorcismo.