A instrução dos corpos de orvalho
Entro na casa como se estivesse para nascer de novo. São cinquenta e dois anos de passos incertos. Sinto que as escadas se dissipam num imenso patamar e que os meus olhos devoram a chuva intensa da madrugada. As aranhas espalham o pânico do tempo, flores de pão emergem da masseira, os buracos da solidão disseminam memórias diluídas pelos predadores das sombras. Sei agora que é possível nascer exausto. Nasce-me o sexo translúcido num gesto delicado de romance. Sou uma nova realidade. Lá fora os galos cantam soporíferos amanheceres. Este é o meu tempo, um tempo inquieto pela importância da destruição. Imobilizo-me à porta observando os corpos de orvalho dos meus antepassados. Esses corpos para sempre frios e esgotados. Esses corpos inquietos pelo esquecimento infinito e imobilizados pelo abandono do chão sagrado. Eles sabem que ainda sou capaz de aperfeiçoar as gotas de orvalho que dão de beber ao desespero. Eles sabem que lhes comeram as nuvens da vida quando se amavam no escuro desejo da noite num perpétuo constrangimento de dor. Eles sabem a dor violenta de voar. Eles sabem das cicatrizes finíssimas da pobreza que lhes atravessou todos os dias da vida. Eles sabem das insónias e das violentas possessões geométricas dos sexos de pedra. Eles sabem dos dias molhados pelo álcool do esquecimento e pelos desvios nocturnos do vento frio e pelos olhos rotos de miséria e fome e desespero. Eles sabem, eu sei, das tardes queimadas pelo trabalho de camponeses escravos, eles sabem da vergonha das crianças pálidas que morriam como coelhos cegos, eles sabem do insuportável fedor da violência, eles sabem do terror cego dos relâmpagos e do cheiro a dúvida e a incerteza. Eles sabem do olhar ríspido de Deus quando lhe pediam pão, ou água, ou sol, ou depuração, ou amor, ou tolerância ou esclarecimento. O olhar de Deus foi o primeiro sinal de indiferença. Por isso eles sabem que viver tinha de ser uma luta inglória contra o sofrimento. E, apesar disso, comportaram-se como se nada soubessem. Por isso saber pode muito bem ser optar por nada saber. Agora os meus olhos desafiam a suavidade longitudinal das fotografias que descansam a um canto do quarto onde o sol tenta penetrar. O meu olhar toca-lhes no corpo de orvalho e com eles vou subir montanhas esquecidas e falar-lhes das mãos demoradas das crianças e da suavidade rectilínea dos lábios dos homens que lançam beijos no regaço das mulheres. Vou falar-lhes devagar na morte que consome todos os corpos. Vou pedir-lhes que pousem mais umas horas nas encostas crepusculares da alba estendendo-se num estremecimento inventado. São agora os seus corpos de orvalho papéis escritos dentro do meu olhar. De novo sou a viagem de um barco à deriva. De novo adormeço no fundo da memória onde repousam esses corpos de gotas pequeníssimas. Agora sou novamente uma aldeia prolongada no esquecimento dos anciãos. Por isso entro em casa dos meus falecidos pais como se estivesse para nascer de novo.